Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A realidade que não cabe no jornal

“Meu leitor morre de ataque cardíaco, não de hanseníase.” Essa foi a explicação que uma jornalista da revista Época deu certa vez a um assessor de imprensa que questionava a dificuldade de conseguir espaço na grande mídia para divulgar os resultados de uma pesquisa sobre a doença que tem no Brasil o segundo maior número de casos, perdendo apenas para a Índia. Essa frase, que já reproduzi em outras ocasiões, não me sai da cabeça desde que começaram os primeiros relatos jornalísticos sobre a desocupação da chamada “favela da Telerj”, na verdade um prédio público administrado pela empresa Oi como parte da concessão do serviço de telecomunicações e abandonado há 12 anos no Rio de Janeiro.

Jornalisticamente, o que aproxima a hanseníase da ocupação da Telerj é o fato de, pelo menos numa primeira impressão, serem ambos problemas de pobre. E, como a confissão acima mostra, ao contrário do que você foi levado a acreditar, o jornalismo não trata do interesse público, mas do interesse de alguns públicos, bem específicos e selecionados. Quando um tema não é do interesse do público eleito de um jornal, ele pode simplesmente não ser notícia (como em geral acontece com a hanseníase) ou, o que é muito pior, tornar-se parte (em geral o obstáculo) da notícia de alguém.

Pois bem. Na edição do Globo de sábado (19/4), seria cômico se não fosse trágico ver que a notícia estampada na capa do jornal era o cancelamento do tradicional ato da sexta-feira da Paixão pela Arquidiocese do Rio por causa dos “invasores”. Os acampados da porta da catedral, horda de miseráveis expulsos a cada dia de um espaço, carregando crianças, fome e uma estrutural falta de lugar nessa sociedade, são o motivo da notícia. Entre as seis perguntas que devem compor o famoso lead, resumo inicial de uma notícia, eles, os miseráveis, são o “por quê”, não “o que” nem o “quem”. São a explicação de uma notícia negativa, não personagens de narrativa alguma.

Manipulação “por outros interesses”

Se estamos falando a mesma língua até aqui, você já deve ter concluído que isso é perfeitamente compreensível. Afinal, o leitor do Globo é aquele que celebra a Páscoa com a família, em casa ou num restaurante de frutos do mar, não aquele que é despejado da favela pelo valor do aluguel, do prédio ocupado pelo batalhão de choque e da frente da prefeitura pela Guarda Municipal. O leitor do Globo é aquele que a igreja aguarda na sua celebração tradicional, não aquele para quem ela fecha a porta. Não que os leitores do Globo não sejam caridosos, ao contrário: boa parte deles certamente faz doações ao “Criança Esperança” e talvez até financie presentes de Natal para os pobres bem comportados que aguardam calmamente do lado de fora. Mas pobre que invade o que é dos outros, que ousa atravessar a cidade e agredir a rotina alheia com a sua miséria não merece nem migalha nem espaço naquela que dizem que é a casa de Deus, que dirá no lead da notícia.

Por isso, depois de ter antecipado jornalisticamente a necessidade de intervenção no prédio da Telerj, com a reportagem “Como nasce uma favela”; de ter recebido informações privilegiadas sobre a ação policial de desocupação e retribuído à altura com uma cobertura digna do gozo das fontes oficiais e governos cujos interesses esse jornal representa, o Globo pode simplesmente ignorar, como notícia, a ação que expulsou os acampados da frente da prefeitura no meio da madrugada. Na capa da edição de sábado (19/4), com variações na edição online, o Globo escolhia seus próprios Judas para malhar e, jornalisticamente, chamava atenção para o que realmente interessava. “Arquidiocese suspende procissão por causa de invasores”, dizia a chamada.

A Igreja fez a sua parte, produzindo todos os insumos que um jornal mal intencionado pode precisar: colocou nas costas dos ocupantes a culpa de não terem aceitado a proposta de serem encaminhados para um abrigo – uma ideia ótima, que só um religioso mais acostumado com a imagem idílica do reino dos céus do que com a realidade mundana dos abrigos da prefeitura faria, e ainda por cima em nome de Deus; lamentou ter visto “violência, rancor, ódio e divisão no coração das pessoas”, qual ovelhas perdidas por sentimentos ruins, não por uma realidade infernal; e, por fim, quase como respondendo a uma encomenda, o arcebispo corroborou os fantasmas com que o jornal tem diariamente assombrado seus leitores ao afirmar que aquelas pessoas eram “manipuladas por outros interesses”, como o Globo destacou na primeira página.

Valores e afetos

Como se sabe, desde junho de 2013 há muitos manipuladores, financiadores de toda ordem e inúmeros “outros interesses” por trás de tudo que acontece no Brasil. Contrariando a objetividade jornalística, ninguém esclarece direito que interesses seriam esses nem muito menos explica o que esses miseráveis estão ganhando para passar dias na rua apanhando da polícia. Mas, pelo andar da carruagem, eu aposto que daqui a pouco vai aparecer um dedo do PSOL e do PSTU, além de Garotinho e dos traficantes de todos os comandos unidos, direita, esquerda e crime organizado, todos unidos, pela primeira vez, para desestabilizar os governos municipal e estadual desta lucrativa e miserável cidade maravilhosa.

Mas esse era apenas o último capítulo da ficção de violência e suspense que o Globo produziu sobre os sem-teto do Engenho Novo e seus agentes manipuladores. Na cobertura da violenta ação de desocupação do prédio feita pela polícia dias antes, a notícia do jornal era a “manhã de tensão, medo e vandalismo” da qual os moradores dos bairros atingidos pelos invasores não iriam se esquecer. Outro problema, outros personagens.

Não pode restar dúvida de que, sob a aparentemente simples definição de notícia, que orienta a prática jornalística contemporânea, esconde-se uma verdadeira arquitetura de valores e hierarquias que são ideologicamente naturalizadas e travestidas de interesse público. É preciso, no entanto, atentar para o fato de que essas representações, por mais estranhas que pareçam, não são propriamente falsas ou desprovidas de qualquer relação com a realidade. Na vida real, fora das páginas e imagens do jornal, essas pessoas, e esses problemas, são, de fato, de segunda categoria; não têm lugar e têm uma existência tão incômoda que precisam continuar invisibilizadas. E é só por isso, porque esses valores e essa hierarquia são reais e muito convenientes, que eles conseguem ter eco e ser eficazes entre os leitores e telespectadores.

Com isso não absolvo a mídia; ao contrário, apenas tento compreender o complexo mecanismo de mão dupla que faz com que as pessoas se permitam acreditar, endossar a reproduzir preconceitos tão inverossímeis que não resistem a dois questionamentos em sequência. Como alguém pode acreditar que famílias com alguma condição saiam de qualquer lugar que estejam para morar num cubículo de menos de 10m2 (tamanho dos barracos que foram construídos no prédio da Telerj) por oportunismo? Ou, o que é pior, por uma ingenuidade manipulada por oportunistas outros? Como alguém pode supor que uma mãe passe noite seguidas com os filhos na rua porque quer? Fácil: classificando essa mãe e essa criança como um outro tão outro que não cabe nos nossos valores nem nos nossos afetos. Um outro para o qual não cabe a preocupação e o cuidado que nós, classe média humanizada e ilustrada, temos com os nossos filhos; como um outro tão outro e tão brutalizado que não se importa de explorar e expor os filhos em proveito próprio, mesmo que esse proveito seja uma moeda na calçada ou um barraco numa favela qualquer.

Quando os fatos falarem por si

Com isso tento entender o esforço que um jornalista, mesmo imbecilizado pelo cotidiano do trabalho numa redação de grande jornal e mediocrizado pelo senso comum que o informa e pauta, precisa fazer para fingir que a notícia não está na sua frente. Para não mencionar o déficit habitacional do Brasil, que está na casa de 23 milhões de moradias, segundo estudos mais recentes, que apontam cidades como São Paulo e Rio nas cabeças. Para não reconhecer uma lógica simples de que se a classe média está sendo expulsa da zona sul e outras áreas nobres pela especulação imobiliária que tomou conta do Rio de Janeiro nos últimos anos, os favelados, que estão na ponta dessa linha nada reta, estão sendo expulsos para a rua.

Na mesma reunião em que ouvi a resposta que abre este texto, outra jornalista explicou o processo de escolha das pautas do jornal destacando que o principal era o interesse público. Perguntei, com disfarçada ironia, que metodologia eles utilizavam para identificar esse interesse e a resposta foi tão simples (e simplória) quanto a anterior: sentavam juntos cinco ou seis jornalistas (todos de classe média leitores de jornais semelhantes aos que eles próprios produzem) e chegavam a um consenso.

Sabemos que em momentos de crise social explícita como o que estamos vivendo desde junho passado as coisas não são tão simples assim, tanto que, como em todas as coberturas supereditorializadas que o Globo fez das principais manifestações, as matérias sobre a desocupação da Telerj também não são assinadas, constando apenas, no final, o nome de uma tropa de jornalistas que teriam participado da cobertura. Mas essa não é a regra nem o único meio de fazer valer a visão invertida, nublada e preconceituosa da sociedade noticiada nas páginas dos jornais e no sorriso do William Bonner. Estabelecemos um macabro pacto diário, em que a nossa desinformação garante a invisibilidade daqueles que não queremos ver. E esse é o verdadeiro “interesse público” que compõe a definição de notícia do jornalismo hoje.

O que essa grande mídia e seus ingênuos ou cúmplices trabalhadores da notícia não perceberam é que público é também uma questão numérica, quantitativa. E que a realidade objetiva dos muitos sem nada que precisam ser vistos está progressivamente invadindo a ficção (inclusive jornalística) dos poucos que não querem ver. Talvez esteja chegando a hora em que nós, que estamos do outro lado do cinismo de um jornalismo de classe que se disfarçou de interesse público, tenhamos que nos desculpar da nossa descrença na objetividade jornalística que eles, donos da informação e da verdade imparcial desse mundo, sempre pregaram. Não vejo a hora de, com uma autocrítica humilde e um sorriso irônico, ter que reconhecer, diante de uma realidade rebelde que mal caberá nos jornais que, finalmente, os fatos vão falar por si.

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Cátia Guimarães é jornalista