Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A arte do contraponto

A manchete menos caridosa sobre o discurso de posse da presidente Dilma Rousseff saiu no Globo: “Dilma recicla promessas e vê ‘inimigos externos’ da Petrobras”. O tom foi mantido no subtítulo: “Presidente lança lema ‘Brasil, pátria educadora’, que já tinha usado em 2013”. O pessoal fez a lição de casa e explorou bem o lema requentado. A expressão havia sido usada em 1º de maio de 2013 – “Poderemos gritar do fundo do nosso coração: Brasil, pátria educadora!” Essa informação foi um diferencial respeitável.

A cobertura do Globo apresentou as duas falas da presidente, no Congresso e no parlatório do Palácio do Planalto, mostrou o contexto dos discursos e mencionou a presença, nas cerimônias, de políticos citados na Operação Lava Jato, da Polícia Federal, uma ampla investigação sobre o saque da Petrobras. Na cobertura da Folha de S.Paulo também se chamou a atenção para a presença dos políticos citados nas delações, com destaque para os presidentes da Câmara e do Senado, Henrique Eduardo Alves e Renan Calheiros.

Nas matérias de alguns jornais houve um contraponto entre as palavras da presidente, a interpretação das falas e a referência às circunstâncias políticas e econômicas. Nessas coberturas, as matérias principais apresentaram tanto o resumo das palavras oficiais quanto a sua explicação. Boa parte dos leitores deveria ter assistido aos discursos no dia 1º, quinta-feira. Para esse público, o contraponto e a tradução das mensagens foi um bom serviço.

Sapo-boi

As coberturas mais explícitas chamaram logo a atenção dos leitores para a grande omissão, o assunto muito importante e quase ignorado nos pronunciamentos presidenciais. A crise econômica brasileira – quatro anos de baixo crescimento, inflação elevada, contas públicas em pandarecos e contas externas esburacadas – foi quase esquecida no falatório da posse.

Um mea culpa seria quase inimaginável, mas quem poderia esperar uma quase total omissão do grande assunto? O primeiro desafio da presidente Dilma Rousseff, em seu segundo mandato, será arrumar as contas públicas, passo indispensável para conter a inflação e retomar o caminho do crescimento econômico. Nenhuma pessoa minimamente informada ignora esse ponto. Em seu discurso de posse, ela mesma reconheceu a importância dessa tarefa. Mas limitou-se a esse reconhecimento e à promessa de um ajuste “com o menor sacrifício possível para a população”. Quem esperava algo mais sério se decepcionou.

Nos 12 meses até novembro, o buraco fiscal chegou a R$ 288,2 bilhões, valor correspondente a 5,64% do produto interno bruto (PIB). Esse resultado, o déficit nominal, incorpora o saldo primário e também os juros da dívida pública.

Na maior parte dos países da União Europeia, muito mais afetados que o Brasil pela crise de 2008, os números são menos feios – um detalhe acessível a qualquer pessoa curiosa, mas nunca reconhecido pela cúpula do governo brasileiro. Nenhum jornal citou esses detalhes na cobertura da posse, mas nenhum repórter ou editor deveria esquecê-los naquele dia. Podem ter esquecido aqueles números, mas o ponto essencial, o problema, foi lembrado.

Na edição daquele dia, quinta-feira (1/1), grandes jornais haviam estimulado a expectativa de um tratamento mais cuidadoso do desafio econômico. “Dilma toma posse com discurso de ajuste fiscal sem mudar política social”, havia anunciado em manchete o Estado de S.Paulo. O principal título de capa da Folha de S.Paulo havia sido mais ousado no otimismo: “Dilma usará posse para explicar ajuste na economia”.

Ninguém havia sacado essas manchetes do nada. Fontes do governo haviam dito como deveria ser o discurso presidencial. Se enfatizaram a referência ao conserto das contas públicas foi porque, como qualquer pessoa razoavelmente informada, entendiam a importância política e econômica do tema.

Mas a presidente preferiu passar muito rapidamente pelo problema. Ela falou sobre o ajuste “como se tivesse acabado de engolir um sapo-boi, como se tivesse se rendido a uma força de ocupação, a de sua nova equipe econômica, mas ainda gritando ‘no pasarán!”, escreveu o colunista Vinicius Torre Freire, da Folha de S.Paulo.

De véspera

Parte importante do trabalho de tradução e de explicação das falas presidenciais ficou para os colunistas. Isso foi mais nítido na cobertura do Estadão, muito contida nos textos principais e mais explicativa e analítica nas matérias dos colunistas. O contraste entre as palavras e os fatos conhecidos apareceu mais fortemente no texto de Dora Kramer, iniciado com um título curto e vigoroso: “Faltou a verdade”. Num das melhores passagens, o texto contrasta a defesa de “práticas mais modernas e éticas” com a montagem de um ministério baseada no loteamento e na barganha. A escolha do ex-governador cearense Cid Gomes para o Ministério da Educação aparece como caso exemplar: quais as suas credenciais para concretizar o lema “pátria educadora”?

No Valor (sexta, 2/1), o contraponto entre os discursos presidenciais e os fatos conhecidos apareceu já nos textos principais da cobertura, mais condimentados que os títulos. Mas o contraponto foi explorado mais amplamente no material do Globo. Mesmo sem comentários dos colunistas, a cobertura das cerimônias seria suficiente para situar o leitor diante de um quadro muito mais interessante e desafiador do que o mundo apresentado nos discursos. A abertura da matéria sobre a fala presidencial no Congresso vale como um painel:

“No momento em que o governo corre o risco de ser tragado pelo escândalo da Petrobras, o combate à corrupção teve destaque no discurso da presidente Dilma Rousseff no plenário do Congresso. Dilma fez ainda uma defesa enfática da crise e tentou descolar-se da crise: afirmou que preservaria a estatal de ‘predadores internos e de seus inimigos externos’.”

Teria sido mais “objetivo” resumir o discurso sem mencionar as circunstâncias? Alguns poderão defender essa opinião. Mas sempre se poderá perguntar: para que, se o público interessado em política já havia assistido aos pronunciamentos presidenciais, pela TV, no dia anterior?

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Rolf Kuntz é jornalista