Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A arte de escamotear

Ninguém ilude mais seu público do que a imprensa esportiva, mais especificamente a ludopédica. Tudo bem que, em doses homeopáticas, o velho e famoso ‘me engana que eu gosto’ é não só tolerável como indispensável, mas o que se vê cada vez mais é uma verdadeira manipulação de fatos, com a tapeação, a mentira e, sobretudo, a omissão imperando em nome de onipresentes interesses comerciais.

Mais do que uma tendência, esse novo estilo de cobertura é uma imposição mercadológica que veio para ficar, para fazer frente aos altos investimentos que são assumidos pelos veículos de comunicação, mormente as emissoras de TV. Nesse sentido, mesmo um gigante financeiro como a Globo tem encontrado dificuldades crescentes para manter o direito de transmissão das competições mais tradicionais, como o Campeonato Brasileiro, não só pela necessidade dos clubes mas, principalmente, pelo surgimento de um concorrente de peso, a Rede Record, controlada pelo bispo Edir Macedo.

Como o produto nem sempre está à altura das cifras, em função da evasão desenfreada de valores e a conseqüente fragilização das equipes, a ordem tem sido subliminar os fatos, sonegar as conotações negativas, mesmo que isso signifique vender gato por lebre. Como se viu num Campeonato Brasileiro de nível fraquíssimo, mas glorificado pela intensa disputa que se manteve até a última rodada.

Os craques do certame

Ora, tivéssemos equipes do porte daquele Santos de 2003, do Cruzeiro de 2004, ou mesmo do São Paulo de 2006, e a competição já teria sido liquidada com várias rodadas de antecedência. A disputa só se manteve acirrada graças às limitações dos competidores, que em nenhum momento – e nisso se inclui o próprio São Paulo, que só foi deslanchar na reta final – inspiraram confiança em seus torcedores, algo que a mídia preferiu deixar de lado. Compreensivelmente, já que para todos os efeitos o equilíbrio monopolizou as atenções até o final, mas forçando descaradamente a barra no tom ufanista que marcou, por exemplo, a festa de encerramento dos melhores da competição, na segunda-feira (8/12).

Não deixou de fazer sentido, por isso mesmo, que todos não só se congratulassem pelo que consideraram ‘o mais emocionante campeonato da era dos pontos corridos’, como a própria escolha dos melhores acabasse sendo, em alguns casos, no mínimo questionável. A começar pela eleição de Murici Ramalho como melhor técnico, pela quarta vez consecutiva, por sinal. Não que Murici não tenha sido fundamental no hexa são-paulino, ninguém em sã consciência pode negar seus méritos na recuperação do time quando tudo parecia perdido. Por outro lado, levando em conta a superioridade do material que teve à mão em relação aos adversários, pode-se dizer também que ele não fez mais do que a obrigação.

Ao contrário de Celso Roth, que levou o desacreditado e limitado Grêmio a brigar pelo título até a última rodada, só não levando o cetro pela imaturidade da maior parte do grupo de atletas, metade da qual promovida da base em menos de um ano.

Não obstante, Roth acabou sendo preterido pelos entendidos até mesmo por Luxemburgo, que ficou no segundo lugar mesmo tendo levado o Palmeiras a um final de campeonato decepcionante, só garantindo a última vaga na Libertadores graças aos vacilos imperdoáveis do Flamengo. Entendidos que também foram incapazes de enxergar em Jorge Vagner uma peça talvez ainda mais importante que o próprio Hernanes, eleito o craque do certame, se não por se constituir no jogador mais moderno em atividade em nosso futebol, pela singela constatação de que a maior parte dos gols são-paulinos saiu de seus pés. E o que dizer das escolhas de Alex, de brilho efêmero no Inter, e dos instáveis Diego Souza e Alex Mineiro, como os melhores de suas posições?

Preocupação prosaica

Mau gosto que em tudo combinou com a extravagante mistura de homenagens que colocou no mesmo balaio figuras venerandas de nosso futebol com a cartolagem normalmente execrada; com o constrangedor show de humorismo, sem falar do corte para a premiação dos vencedores do quadro bola murcha e bola cheia pela estereotipada dupla de apresentadores do Fantástico, enfim, com uma festa cafona em que mesmo atores tarimbados, como Toni Ramos e Marcos Palmeira, pareciam pouco à vontade, com o ar enfastiado de quem está participando de uma farsa.

Farsa que a imprensa alegremente voltou a encampar dias depois com o anúncio da contratação de Ronaldo pelo Corinthians, pelo menos no que tange à Globo, que aliás sempre primou pelo tratamento diferenciado ao craque. Algo que os gerentes de banco chamam de política de reciprocidade. Tudo bem, bom moço, ao menos até o episódio dos travestis, Ronaldo sempre fez por merecer mimos por tudo que já fez no futebol. O problema é quando se omitem aspectos que podem acabar transformando a contratação num grande blefe.

Em meio ao oba-oba generalizado que predominou desde o anúncio da contratação, em que o grosso da imprensa evitou dar uma de desmancha-prazeres, coube à Folha de S.Paulo a honrosa exceção de ter divulgado uma cláusula crucial do contrato: a obrigatoriedade do Corinthians de liberar Ronaldo em seis meses, caso ele assim o queira. Ou seja, no meio do ano, quando da abertura da janela de contratações do futebol europeu.

Por estas e outras, não é preciso ser muito esperto para concluir que a torcida do Flamengo não precisa ficar muito pesarosa por Ronaldo ter lhe virado as costas. Prejuízo financeiro, certamente o Corinthians não terá, com todo o portentoso marketing que alavanca o negócio, e Ronaldo muito menos, de acordo com as projeções de que poderá faturar até 10 milhões só com a venda de produtos licenciados. Mas se o prazo de seis meses parece ser razoável para que volte a atuar normalmente, como acreditar que não exercerá a tal cláusula diante do inevitável assédio dos europeus? Se bem que a maior preocupação, a princípio, é bem mais prosaica: diz respeito à sua completa recuperação, se não no mesmo nível de antigamente, o que de antemão se descarta, de modo a justificar a fama e a expectativa geral, dos corintianos em particular.

Cumplicidade no sucateamento

Dizem os entendidos que se ele voltar a jogar 50% do que já jogou, já será suficiente para deitar e rolar em nosso futebol, o que eu duvido muito. O raciocínio é simples: ao contrário de Romário, cujo forte era o posicionamento na área, Ronaldo sempre dependeu da força física, da explosão muscular que lhe permitia deixar os beques para trás nas arrancadas. Algo que, com os joelhos remendados, dificilmente conseguirá repetir. Como uma mudança de estilo a esta altura está fora de questão, os entendidos correm sério risco de quebrar a cara. Mais uma vez.

A sorte deles é que o grau de exigência de ouvintes e leitores está longe daquele normalmente dedicado a seus times. Daí que a mesma memória curta que garante vida longa aos políticos e suas mazelas, permite que as mesmas bobagens, disparates e previsões furadas sejam proferidos impunemente. Há até quem tire partido disso, assumindo o gênero parlapatão, como o dublê de apresentador e animador Milton Neves, sem falar no indefectível Galvão, uma espécie de patrono de uma categoria cada vez mais infestada de palpiteiros de todos os naipes. Para boleiro desempregado, por exemplo, uma boquinha de comentarista sempre aparece.

Sorte deles, como já disse, que a concorrência é grande e espaço para gaiatices há de sobra, com programações gigantescas que consagram a arte de encher lingüiça. Até aí, tudo bem, que o futebol sem resenha não teria graça. O que realmente compromete o trabalho da imprensa, mais do que as eventuais mancadas e bolas fora, é a quando se tenta obliterar os fatos, desfocando a realidade em benefício próprio, como visivelmente alguns estão fazendo para manter seu lugar cativo no mercado. Ao se aliar aos espoliadores e fazer vistas aos problemas crônicos de nosso futebol, como a falta da prometida legislação que enquadre os maus dirigentes, a imprensa acaba sendo cúmplice de um processo de sucateamento que vai se tornando cada vez mais difícil de driblar, quanto mais escamotear.

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Jornalista, Santos, SP