Monday, 13 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

A tipografia no Brasil do século 18

Em meio a manuscritos da Inquisição de Lisboa repousa um folheto datado de 1747 que pode mudar a forma como a introdução da tipografia no Brasil é contada. Em março de 2010, ao finalizar o levantamento de um maço de documentos do Tribunal do Santo Ofício depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, o técnico Paulo Leme, da divisão de Aquisições e Tratamento Arquivístico, deparou com uma peça curiosa. Um impresso de quatro páginas em papel filigranado, escrito em latim, com o título de Dissertationes Theologicas de merito justi…. Enquanto a folha de rosto não revela pistas importantes sobre a obra, o texto impresso ao final dela é de tirar o fôlego dos estudiosos dos primórdios da impressão no Brasil: ‘Flumine Januarii. Ex Secunda Typis Antonii Isidorii da Fonseca’.

Impressor reconhecido em Lisboa, o português António Isidoro rompeu o bloqueio imposto pela Coroa para a instalação de tipografias no Brasil. Até o momento, era possível comprovar a produção de apenas três obras pela pioneira oficina fluminense de António Isidoro da Fonseca. Durante a aventura no Rio de Janeiro saíram à luz, em 1747, Relação da entrada que fez o ex.mo e rev.mo sr. D. Fr. Antonio do Desterro Malheiro, bispo do Rio de Janeiro…; Em aplauso do Excelentíssimo e Reverendíssimo senhor dom frei Antonio do Desterro Malheiro, digníssimo bispo desta cidade e Conclusiones Metaphysicas. Outras duas publicações são atribuídas à tipografia de António Isidoro no Brasil, mas a autoria do impressor não é comprovada.

Logo que a notícia da atividade do impressor chegou à metrópole, o Conselho Ultramarino e as autoridades eclesiásticas entraram em ação. Das duas esferas foram emitidas ordens expressas para que a oficina fosse desmantelada e o proprietário retornasse a Lisboa – o que ocorreu, de fato, em 1750. Neste mesmo ano, António Isidoro solicitou ao Conselho Ultramarino permissão para reinstalar o negócio no Rio de Janeiro ou na Bahia, então capital da colônia. A resposta veio de forma sumária: ‘Excusado’.

Poucos dados já foram descobertos sobre a curta passagem de António Isidoro pelo Brasil. De sua vida pregressa, sabe-se que chegou a ser considerado um dos dez tipógrafos mais importantes de Lisboa. Entre 1735 e 1745, imprimiu mais de cem obras, entre elas o primeiro volume da Bibliotheca Lusitana, do padre Diogo Barbosa Machado, e três óperas do comediógrafo brasileiro António José da Silva, o Judeu. Resta esclarecer que motivos levaram António Isidoro à arriscada ideia de estabelecer sua segunda gráfica em uma cidade que, em meados do século 18, contava com um mercado livreiro ainda incipiente.

2.750.000 imagens disponíveis

Embora não houvesse uma lei específica que proibisse a impressão em terras brasileiras, de todas as colônias de Portugal apenas o Brasil não contava com tipografias. Um cordão de isolamento impedia a circulação de ideias na mais importante colônia portuguesa. Dos portos brasileiros, saíam as riquezas que sustentavam a monarquia. Por isso, a Coroa empregava todos os recursos para evitar o funcionamento de prelos longe do rígido controle censório e, desta forma, evitava o surgimento de ideias emancipatórias.

Esta conjuntura perdurou até 1808, quando, fugindo das invasões napoleônicas, o príncipe regente D. João, depois D. João VI, cruzou o Atlântico e instalou-se no Rio de Janeiro com todo o aparato de Estado. Com a presença da Corte no Brasil, impôs-se a necessidade de um mecanismo para a comunicação com os súditos. Em maio daquele ano, o Brasil foi brindado com uma tipografia, a Impressão Régia. A letra impressa chegou ao Brasil com séculos de atraso em relação às colônias espanholas e permaneceu censurada até 1820.

Paulo Leme concedeu uma entrevista por e-mail ao Observatório da Imprensa sobre a descoberta da Torre do Tombo. A instituição já disponibilizou cerca de 2.750.000 imagens durante o trabalho de identificação de documentos do arquivo da Inquisição de Lisboa.

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O folheto Dissertationes theologicas De Merito justi… poderia ter passado despercebido entre os outros documentos do maço que o senhor estava catalogando. O que lhe chamou a atenção naquele momento?

Paulo Leme – Duas coisas, na verdade, chamaram de imediato a minha atenção quando encontrei essa tese em latim. A primeira delas foi o fato de ser o único documento impresso existente no maço 20, constituído de um grande conjunto de manuscritos, mas dos quais nenhum se relacionava com ela. A segunda, foi considerar que o Colégio jesuíta da Bahia era mencionado no rosto da publicação, o que já me alertava para algo pertinente ao Brasil, meu país de origem. Foram todavia os dizeres do colofão, ou seja, as últimas linhas integrantes do impresso, que me deram realmente consciência do verdadeiro alcance do achado, ao verificar a indicação do Rio de Janeiro como local da impressão, o nome de António Isidoro da Fonseca e, finalmente, a data de 1747. Com efeito, tais dados me trouxeram à memória tudo aquilo que Rubens Borba de Moraes narra, no seu excelente livro O Bibliófilo Aprendiz, a respeito do primeiro impressor que atuou em território brasileiro. Interessado pelo tema há muitos anos, eu tinha relido recentemente a obra de Borba de Moraes, o que me fez logo constatar que essa tese não aparecia entre as raras publicações conhecidas da oficina de António Isidoro da Fonseca. Posteriormente, pude comprovar que outros especialistas da matéria também não referiam o título que eu encontrara.

Como o descrever a sensação de deparar com um documento inédito e revelador como este?

P.L. – Além de um sentimento de especial satisfação por participar do projeto ‘Inquisição de Lisboa online’, contribuindo com descrições arquivísticas de documentos de inegável importância, tive, mediante este achado específico, a confirmação definitiva do extraordinário potencial informativo que o fundo Tribunal do Santo Ofício oferece aos pesquisadores de assuntos brasileiros, sobretudo porque alguns meses antes eu também localizara, disperso entre os documentos avulsos de outro maço de miscelânea do mesmo fundo, o processo inquisitorial de um vulto singular, Hipólito José da Costa, considerado o primeiro jornalista brasileiro. Deparar, enfim, com um impresso que é um testemunho direto dos primórdios da imprensa no Brasil e se mantém até agora como exemplar único, representou um término excepcional dos meus trabalhos no citado projeto, que efetivamente se encerraram com a descrição do maço 20.

Fruto exclusivo de um feliz acaso

O fato de a obra estar depositada na Inquisição de Lisboa pode indicar que o Santo Ofício foi consultado sobre o folheto?

P.L. – Como já adiantei, o único subsídio concreto neste assunto, é que o impresso se encontrava num maço de documentos diversificados, nenhum dos quais o refere. Portanto, até que surjam evidências que expliquem satisfatoriamente a presença desse exemplar no acervo do Tribunal do Santo Ofício, esta pergunta permanecerá sem resposta válida. As hipóteses, como se pode imaginar, são inúmeras: será ele proveniente da extinção da oficina de António Isidoro, servindo então como elemento de prova da sua atividade tipográfica na colônia? Ou terá sido resultado do envolvimento dos dois comissários do Santo Ofício que assinaram as licenças de impressão? Ou, ainda, foi remetido para Lisboa exatamente por eles, como medida de cautela? Creio que o essencial é perceber que quaisquer hipóteses aventadas são convites para que os pesquisadores não cessem de aprofundar as investigações no mencionado fundo que, em função da sua extraordinária riqueza documental, poderá conter boas surpresas.

Qual é o estado de conservação da obra e como é a descrição física dela?

P.L. – Trata-se de um in-fólio impresso em quatro folhas não numeradas de papel filigranado, com os versos da primeira e da última em branco. Quanto às condições materiais, elas são estáveis, pois além de razoável conservação do suporte papel, a mancha de impressão, ornada de cercaduras, afigura-se uniformemente nítida. Os danos mais severos restringem-se a algumas perfurações marginais causadas por insetos, bem como a um vinco horizontal na zona central, testemunho de que o in-fólio permanecera dobrado ao meio por muito tempo.

Acredita que podem haver outras obras publicadas pela oficina brasileira de Antônio Isidoro que ainda não foram catalogadas?

P.L. – Esta pergunta se prende com tudo o que já afirmei anteriormente no que toca ao inesgotável potencial da documentação do Tribunal do Santo Ofício. Neste sentido, importa ainda lembrar que o projeto ‘Inquisição de Lisboa online’ se ateve, como a sua própria designação revela, a uma parcela somente desse imenso fundo, restando então por desbravar as Inquisições de Coimbra e Évora, bem como o Conselho Geral. O sábio bibliógrafo Borba de Moraes, na obra que citei no início desta entrevista, foi dos primeiros a enfatizar que ‘nem tudo está esclarecido no caso da introdução da imprensa no Brasil […] Mas creio que investigações nos arquivos de Portugal, entre processos e papéis da época, revelem novidades’. Estou convencido de que este é um desafio que se deverá tomar a peito, em benefício da cultura brasileira.

De que forma a descoberta desta publicação pode contribuir para a história da introdução da imprensa no Brasil?

P.L. – Entendo que para um país em que o prelo foi introduzido tão tardiamente e representado por uma produção bibliográfica tão rarefeita, a descoberta de cada novo título dessa época é um acréscimo de inestimável valor. O que me coube, porém, foi apenas, primeiramente, a ventura de encontrar, não havendo mérito numa ação que é fruto exclusivo de um feliz acaso, e, em seguida, descrever, que é simplesmente a minha função como arquivista. A outros interessados, mais aptos e capazes, cumprirá a verdadeira contribuição para a história da imprensa no Brasil, que será explorar todas as pistas que o impresso oferece, a começar pelos personagens que estão nele declarados. A descrição e a reprodução integral do impresso estão disponíveis aqui, sob o código de referência PT/TT/TSO/0020.

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Jornalista