Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Agência Carta Maior


JORNALISMO & CRISE
Boaventura de Sousa Santos


O regresso do Estado?


‘A relação do Estado com os cidadãos é complexa porque, ao contrário do que
pretende a teoria liberal, o Estado não reconhece apenas cidadãos, reconhece
também os grupos e classes sociais a que eles pertencem. Como estes grupos e
classes têm uma capacidade muito diferenciada de influenciar o Estado, a
igualdade dos cidadãos perante o direito e o Estado é meramente formal e esconde
desigualdades por vezes gritantes. É por isso que os empregados por conta de
outrem pagam proporcionalmente mais impostos que os seus patrões, que o pequeno
empresário é mais controlado pela fiscalização do Estado que o grande
empresário, que a prática de crimes é socialmente mais diversa do que a
população prisional, que as empresas têm mais acesso à justiça que os cidadãos e
que os grandes negócios (privatizações, fusões, etc.) quase sempre recorrem à
cumplicidade ilegal dos agentes do Estado sem que tal configure o crime de
corrupção.


Apesar de tudo isto, ao longo do século passado, o Estado democrático soube
ganhar a confiança e a lealdade de vastas camadas da população através das
medidas de redistribuição social que protagonizou e que ficaram conhecidas por
políticas e direitos sociais (educação pública, serviço nacional de saúde
universal e gratuito, segurança social, etc.). Foi um período histórico curto e
em Portugal ainda mais curto porque o seu momento alto ocorreu tardiamente,
depois da revolução de 1974. Nas últimas décadas, acumularam-se os argumentos
contra a sustentabilidade deste modelo de Estado e, portanto, das políticas
sociais que ele funda. Falou-se da crise financeira do Estado, das mudanças
demográficas de que supostamente decorre a inevitabilidade da privatização da
segurança social, da necessidade de promover a autonomia dos cidadãos,
tornando-os responsáveis pelo seu bem estar presente (emprego, saúde, reinserção
social) e futuro (reforma).


Estes argumentos traduziram-se em mudanças nas políticas públicas que, em
geral, contribuíram para quebrar o vínculo de confiança e lealdade que se criara
entre o Estado e os cidadãos. Esta quebra foi ainda agravada por dois outros
factores. Por um lado, o discurso dos neoconservadores, com forte presença na
mídia, demonizou o Estado ao ponto de o transformar em fonte de todos os males
da sociedade. Nos termos desse discurso, o Estado seria inerentemente
ineficiente, predador e parasita e, portanto, o seu dano só se poderia reduzir
reduzindo o seu tamanho, idealmente ao de um Estado mínimo. Por outro lado, a
erosão que este discurso causou nos valores republicanos e no espírito de
serviço público contribuiu para o aumento exponencial da corrupção com o
consequente descrédito do Estado e da classe política.


Tudo leva a crer que estamos a entrar numa nova fase. Os neoconservadores
chegaram à conclusão de que tinham levado longe demais a sua crítica ao Estado.
É que a desmoralização do Estado teve, em muitos países, o efeito perverso de
incapacitar o Estado para realizar as próprias tarefas da agenda neoconservadora
(garantir a segurança jurídica dos contratos, manter a ordem pública, defender a
propriedade privada). Perante isto, foi necessário reclamar um certo regresso do
Estado, mas de um Estado diferente: moderno, eficiente, tecnocrático, hi-tech,
com espírito gerencial. Os governos de centro ou de centro-esquerda têm-se
revelado mais bem equipados para levar a cabo este regresso. Ao fazê-lo, porém,
correm sempre o risco de, ao acentuarem a eficiência tecnocrática, não cuidarem
do reforço da cidadania sem o qual a confiança no Estado nunca será recuperada.
Como evitar esse risco nas reformas da administração actualmente em curso? Será
o tema de próxima crónica.’


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