Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Apontamentos sobre o dia-a-dia

Quarta, 20/4/2005

Papa e política

As primeiras páginas dos principais jornais desta quarta-feira foram tomadas pela eleição do papa Bento 16.

Não foi só no Brasil. Pela internet pode-se constatar que o mesmo ocorreu em muitos outros países, mesmo em alguns, como os Estados Unidos e a Inglaterra, que não têm maioria de católicos.

Tomara que as capas espetaculares tenham atraído muitos leitores para o conteúdo dos cadernos especiais publicados sobre a escolha do cardeal Joseph Ratzinger. A Folha de S.Paulo, O Globo e o Estado de S.Paulo, por exemplo, publicam material que permite entender por que a questão tem importância social e política. Basta pensar na queda do Muro de Berlim, episódio decisivo do século 20 no qual o papa João Paulo II teve participação. Ou da ascensão, no Brasil, do sindicalista católico Luiz Inácio da Silva. Ou, ainda no ano passado, em declarações do cardeal Ratzinger contra a proposta de ingresso da Turquia na União Européia.

A colunista do ‘Panorama Econômico’ do Globo, Miriam Leitão, encontrou uma maneira de protestar contra a escolha de um cardeal conservador. Abre sua coluna falando do número de aidéticos no mundo, 39 milhões, e da oposição dos conservadores católicos a métodos de prevenção da doença que impliquem aceitar a idéia de que sexo não é algo ligado exclusivamente à procriação.

Os jornais brasileiros oscilam entre um tratamento laico ou católico aos assuntos da Igreja. E é curioso constatar que não existe nenhum jornal importante, nem revista, ligado a outra religião. Outras denominações têm centenas de emissoras de rádio, e a Igreja Universal do Reino de Deus é dona de uma rede de televisão aberta e de um jornal – Folha Universal – de expressiva circulação. Como será esse panorama daqui a 50 ou 60 anos, quando, pelo andar da carruagem, os que se dizem católicos serão pouco mais de metade da população?

China e Japão, é bom ficar de olho

Os jornais brasileiros parecem subestimar a gravidade do conflito entre China e Japão. Tudo que diz respeito à China tem importância global, antes de mais nada porque a China é hoje uma das locomotivas da economia, com sua demanda por matérias-primas e combustíveis. Mas atrás do Japão estão os Estados Unidos. O Globo tem um correspondente na China, Gilberto Scoffield, e a TV Globo, Sonia Bridi. A Folha e o Estado já tiveram, quando a China era menos importante para o Brasil, agora não têm mais.

Dono de jornal de qualidade

O Globo publicou na segunda-feira (18/4), e o Estado de S.Paulo repetiu na quart, entrevista do proprietário e diretor do mais importante jornal americano, The New York Times, Arthur Sulzberger Jr. Diga-se de passagem que O Globo traduziu corretamente o ‘you’ inglês por ‘o senhor’, enquanto no Estadão ficou, estranhamente, no ‘você’.

Vários tópicos importantíssimos para a discussão crítica da mídia.

** Assumir responsabilidade como se fosse o próprio governo. ‘Nosso trabalho não é pôr em perigo a segurança dos Estados Unidos.’

** Na contramão do denuncismo. Ouvir sempre a pessoa acusada. Aqui se costuma chamar isso de ‘ouvir a outra parte’.

** Admitir abertamente os erros. Caso do repórter cascateiro Jayson Blair.

** Reagir à perda de faturamento com melhoria da qualidade e aumento do número de praças alcançadas (o que reforça a publicidade).

** Blogs: ‘Dar uma opinião é muito diferente de fazer jornalismo. Tenho minhas opiniões, você também. Mas precisamos de fatos, dados, análises. E isso não é barato. Compilar e difundir dados é custoso.’ Aqui temos um dos pontos críticos de toda a discussão. Como montar um modelo econômico que permita sustentar esse trabalho custoso, que requer a manutenção de equipes conscientes e entrosadas. Essa é ‘a’ pergunta.



Quinta, 21/4/2005

O Equador fica longe

Dos três mais influentes jornais brasileiros, só a Folha usou material enviado por um correspondente em Quito. Não só por essa razão, sua cobertura é de longe a melhor. A do Globo, em espaço menor, uma página, é melhor do que a do Estadão, em duas.

A Folha deu o nome certo mas o cargo errado de Cyntia Viteri, que empossou o vice-presidente, Alfredo Palacio. Ela é deputada e exercia a presidência da Câmara. O Estadão acertou. O Globo errou nome e cargo: disse que a posse foi dada por Cecilia Armas, a procuradora-geral (‘fiscal’, em castelhano).

Em matéria de título na primeira página, Estado e Globo deram o óbvio, usando técnica pobre (‘Congresso derruba o presidente do Equador’, Estado; ‘Presidente do Equador é deposto’, Globo). A Folha foi adiante, como fazia sempre o Jornal do Brasil em seus dias de glória: ‘Equatoriano deposto pede asilo ao Brasil’.

Com o trabalho compartimentado dos jornais, e falta de atenção dos editores, os cadernos muitas vezes são vizinhos que se desconhecem. A mesma Folha publica nesta quinta-feira um caderno de turismo sobre … Equador, mas nele o presidente ainda é Lucio Gutiérrez, embora enfrentando uma séria crise. Ou ninguém se lembrou disso, ou o caderno já estava rodado.

Papa na mídia

Os jornais comentam a maneira como a mídia pelo mundo afora deu a eleição de Bento 16. Sinal de que notícia também é notícia.

Morte de Tancredo

Houve todo um circo e irresponsabilidade no atendimento a Tancredo Neves, em março de 1985. Se ele tinha alguma chance de sobrevivência, ela foi reduzida nos hospitais. Talvez por isso o último presidente da ditadura, João Figueiredo, tenha preferido se operar do coração em Cleveland, nos Estados Unidos, em 1982.

Quem trata desse circo hospitalar é Ronaldo Costa Couto, na época governador do Distrito Federal e hoje historiador. Está num artigo na Folha. Mas o essencial sobre o episódio está escrito no Estado, em artigo de Aécio Neves. Vou citar: o presidente suportou a doença movido por profundo senso de responsabilidade para com a nação. Ele sabia muito bem dos riscos que corria. Naquele momento não era a própria vida que o preocupava, mas a vida do Estado democrático, pelo qual vivera e lutara.

Racismo e prepotência

Na narração do jogo entre São Paulo e Quilmes, só se disse que o argentino Desábato usara a palavra ‘negro’ de forma insultuosa. Depois circulou a versão de que ele nitidamente dissera uma frase completa: ‘Negro isso ou aquilo’. Agora os peritos não conseguem recuperar a frase completa em leitura labial na filmagem.

Nesse episódio houve duas taras sucessivas. O racismo do argentino e a prepotência da polícia e da mídia brasileiras. Mas, com escreveu na quinta (21/4) Luis Fernando Verissimo, valeu para chamar a atenção do racismo que todos nós, brancos, negros e pardos, praticamos no Brasil até por inércia.

Surpresa com os juros

Os jornais deram do mesmo jeito: Banco Central surpreendeu. Só até certo ponto. Quem valorizou nos últimos tempos o noticiário sobre ameaça inflacionária não ficou tão surpreso assim.

Enquanto a chiadeira em relação à dureza do Banco Central ocorrer dentro do Brasil, a situação está sob controle. Problema será essa sinalização parar de funcionar para fora. É de fora que virão, ou não virão, os recursos para financiar o desenvolvimento brasileiro nos anos e décadas futuros.

Se o Banco Central tivesse plena autonomia, não precisava ser tão carrancudo.

Fantasma da Ópera

Entretenimento e cultura continuam misturados. Nada contra os grandes espetáculos, mas é de se perguntar se outras manifestações artísticas mereceriam tanto espaço. Um musical sobre a vida de Pixinguinha, por exemplo.



Sábado, 23/4/2005

O Equador é muito longe

Agora já há em Quito correspondentes dos jornais Estado de S.Paulo, Folha e Globo.

A Folha informa que trazer o presidente deposto Lucio Gutiérrez para o Brasil custará uns 60 mil reais. E dá vontade de perguntar: qual é a lógica desse cálculo? Por que não se calcula quanto está gastando o embaixador do Brasil em Quito em telefonemas para Brasília? Ou será que o Ministério das Relações Exteriores já tem Skype ou outro sistema de telefonia via internet?

Imigrantes brasileiros detidos nos Estados Unidos

A manchete do Globo de sábado é a continuação da novela na vida: 232 brasileiros detidos em dois dias no Texas, ao tentarem passar a fronteira dos Estados Unidos. O Jornal do Brasil ignora o assunto, assim como o Estado de S.Paulo. Mas a Folha dá a notícia.

Uma pesquisa nos arquivos da internet mostra que a novela não inventou o assunto, mas levou-o da vida para o noticiário. Brasileiros não começaram a tentar entrar nos Estados Unidos sem documentação válida porque Gloria Perez criou América. Mas os meios de comunicação praticamente ‘descobriram’ o assunto depois que ele foi levado para as casas dos telespectadores da Rede Globo

O jornal O Dia, do Rio de Janeiro, que também dá em manchete a detenção dos brasileiros, mostra como o problema não é de hoje. Em 2004, informa, 22.500 brasileiros foram detidos tentando entrar ilegalmente nos Estados Unidos. E em março deste ano a polícia prendeu no Rio um salvadorenho, acusado de comandar uma quadrilha que enviava imigrantes ilegais. Ele estava sendo procurado pela Polícia Federal há nada menos do que dez anos.

Enquanto isso, os jornais do Rio noticiam uma guerra entre quadrilhas de policiais que lutam por linhas de vans. Três pessoas morreram em Campo Grande, Zona Oeste da capital fluminense.

Piadas bobas sobre o papa

O Estadão informa que o Canal Plus da televisão da França pediu desculpas à Conferência Episcopal por ter mostrado um boneco do papa Bento 16 caracterizado como um novo Hitler, em alusão ao envolvimento de Joseph Ratzinger com a juventude hitlerista, quando era adolescente.

É o tipo da piada fácil e sem fundamento. Estabelecer uma relação entre a participação de Ratzinger na juventude hitlerista e suas posições conservadoras é não entender o antinazismo visceral do mentor de Ratzinger, o papa João Paulo II. Não entender ou não querer entender.

E não entender que a participação na juventude hitlerista na Alemanha, fascista na Itália ou salazarista em Portugal, por exemplo, era obrigatória. Não participar significava praticamente declarar hostilidade a um Estado totalitário.

Na imprensa da Inglaterra houve alusões abertas à origem do novo papa, mas lá os alemães ainda são identificados como os inimigos na carnificina da Segunda Guerra Mundial. Do mesmo modo como tem gente no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, para quem ‘alemão’ é sinônimo de inimigo. Talvez por influência da participação do Brasil na guerra, contra a Alemanha nazista.