Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Até onde a mídia é capaz de ir?

Primeiro foi a TV Globo que levou o juiz a manter presa a jovem assassina da família Richthofen, em São Paulo. Recapitulando: as imagens televisivas mostravam o advogado aconselhando-a a chorar, a fingir arrependimento, para comover a quem de direito. Depois, foi o jornal O Globo, não mais um juiz ou mesmo a polícia, que induziu um menor a confessar o assassinato do guitarrista da banda Os Detonautas, no Rio de Janeiro. ‘Atirei mesmo’, admitiu o assaltante depois de persistentes negações frente às autoridades. ‘Ele jogou o carro em cima de mim.’

Os dois episódios oferecem um bom pretexto para que se traga novamente à baila o velho tópico da influência da mídia sobre o comportamento dos indivíduos na esfera pública. Por um lado, há aqueles que acreditam piamente no poder ilimitado dos meios de comunicação. Num texto acadêmico recente, o analista francês Rémy Rieffel ensaia uma explicação:

‘Diversos fatores conjugam-se no sentido de dar crédito a essa tese. Em primeiro lugar, interessa aos dirigentes políticos imputar aos media e às sondagens a responsabilidade de algumas das suas derrotas. Em segundo lugar, interessa aos conselheiros em comunicação ou em imagem reforçar a crença nesse poder ilimitado a fim de, assim, aumentarem a sua legitimidade. O público, enfim, suspeita, cada vez mais, do trabalho dos jornalistas e dos media e tende a acusar estes últimos de deformarem a realidade ou de estarem a soldo do poder. Os media constituem, de alguma forma, os bodes expiatórios de doenças que afetam as nossas sociedades’.

Hoje se sabe muito bem que a avaliação dos efeitos da mídia não pode ser automaticamente deduzida do aumento da concentração dos meios em conglomerados empresariais, nem ao puro e simples desenvolvimento da lógica do mercado, para a qual pouco existe além das médias estatísticas de audiências. Para uma honesta medição de impactos ou efeitos, são indispensáveis os juízos e as opiniões concretas do público (leitores, ouvintes, telespectadores), que decorrem de sua efetiva capacidade de interpretação das mensagens.

Para Rieffel, é exatamente aqui que reside o problema, ponto de partida de sua explicação sobre a suposta onipotência da mídia:

‘Enquanto as análises sobre produção e difusão dos discursos midiáticos se multiplicam, as referentes à recepção das mensagens midiáticas são, por agora, insuficientemente desenvolvidas’.

Posições, opiniões, comportamentos

Para os militantes da pesquisa acadêmica, não há realmente novidade alguma nessa argumentação, embora possam todos concordar em que seja necessário reprisá-la sempre que se dêem como inquestionáveis os enunciados sobre o estatuto da mídia oriundos de seu próprio território corporativo – isto é, jornalistas, editores e produtores de comunicação em geral. No entanto, há um nível em que a observação participante (ou pelo menos acurada) do analista é capaz de obter conclusões ponderáveis sem passar por uma sondagem extensiva da recepção: o nível do relacionamento entre os meios de comunicação e os meios sócio-históricos em que se movimentam as elites reprodutoras de opinião.

Desta maneira, o poder da mídia varia em função das relações entre as forças sociais – seja da sociedade política, seja da sociedade civil – atuantes num momento determinado da História. Não há aí o fenômeno de um ‘absoluto’, mas uma lógica relacional: tanto as instituições do Estado quanto as da vida civil confrontam as suas particulares representações do mundo, sobre as quais, na dependência de seu maior ou menor vigor, a mídia vem projetar a sua sombra.

Esta ‘sombra’ é que se revela observável sem recurso à pesquisa de recepção, pois se trata no fundo de um alinhamento das diferentes posições, opiniões e comportamentos pelo grande atrator do marketing, isto é, pela cristalização centrista de um padrão norte-americano de vida.

Relações exasperadas

Um curto instante reflexivo sobre o exemplo inicialmente citado (TV Globo/Richthofen) nos permite ver a força do impacto das imagens televisivas sobre uma decisão judiciária, embora se conheçam as alegações de impermeabilidade da magistratura aos pontos de vista leigos.

Já o caso do assaltante deixa-nos verdadeiramente intrigados quanto à extensão do poder de influência da mídia. Abrindo-se com o repórter, naquele instante transformado em representante vicário do Ministério Público, o jovem assassino do guitarrista sentiu-se livre para uma argumentação cínica e incoerente sobre o crime, redefinindo-se ali mesmo como vítima.

A questão a se levantar agora é a seguinte: que tipo de ‘vida vicária’, que novo bios existencial é esse, sugeridos pelo universo da mídia e do marketing, numa lógica de relações socialmente exasperadas entre abundância e carência?

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro