Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Compostura, lá no passado

Para as poucas pessoas que ainda lembram dele, A Notícia do Rio de Janeiro, que deixou de circular em 1998, era um jornal sensacionalista e vulgar, feito com sangue, cadáveres esquartejados na primeira página, descrições detalhadas de crimes violentos, além de uma chocante dose de sexo e macumba. Essa imagem de violência e vulgaridade dos últimos anos predomina sobre A Notícia das primeiras décadas, uma folha moderada e bem cuidada, que tinha a preocupação de informar sem chocar e de opinar com serenidade.

O vespertino A Notícia foi fundado em setembro de 1894 por Manuel Jorge de Oliveira Rocha, o “Rochinha”, português radicado no Rio. Sua característica mais importante foi, talvez, a ausência de compromissos partidários. A coluna principal, praticamente a única manifestação de opinião, era “O Boletim do Dia – o Caso de Hontem”, na qual comentava os fatos da atualidade com a moderação e ponderação que caracterizava todo o jornal. Mantinha “no escabroso terreno da política a calma e educação das meninas”, segundo Alberto Torres, que trabalhou no jornal. A Notícia, disse, tinha uma “opinião calma, correta e serenamente dita”. Seu principal objetivo era informar, antecipar-se ao que os jornais do dia seguinte iriam publicar. “Queria dar “um noticiário abundante e de primeira mão”, segundo Medeiros e Albuquerque. Tinha mais repórteres que os concorrentes e um excelente e dispendioso serviço telegráfico. Publicava também uma atraente seção literária com a colaboração dos principais escritores da época.

A Notíciatinha uma apresentação gráfica arejada e leve. Era diagramada em apenas seis colunas e utilizava tipos de letras maiores, para facilitar a leitura. Circulava com a data do dia e do dia seguinte. Na opinião de Luiz Edmundo, A Notícia era o mais simpático, o mais lido, o de maior tiragem entre os vespertinos. “Quatro páginas de papel cor-de-rosa que o senhor Manuel Jorge de Oliveira Rocha, o ‘Rochinha’, orienta e dirige e, quando escreve, usa uma literatura de confeitos e brioches, prosa alambicada, leve, sempre bem penteadinha, tocada de rouge e de pó de arroz, onde os adjetivos se movem, vestindo toiletes de cerimônia, casaca e luvas de pelica brancas.” Seus 15 mil exemplares, uma tiragem consideravelmente elevada para a época, eram lidos por uma classe média. Ou, como dizia Alberto Torres, esses leitores “formavam na opinião brasileira a fidalguia da inteligência e dos costumes”. Tinha uma boa penetração na burocracia e no meio diplomático pelo serviço telegráfico do exterior.

Linha popular

A partir de 1895 foi impresso num fino papel cor de rosa, “importado expressamente”, para diferenciá-lo dos concorrentes, pelo que era conhecido como “o jornal dos punhos de renda” ou “a dama cor-de-rosa”. Segundo Olavo Bilac, o jornal estava bem integrado na cidade. “Eram quatro horas da tarde. Passavam homens apressados, carregando embrulhos. Os garotos apregoavam A Notícia. Era a hora em que se fecham os escritórios e as repartições públicas.” Segundo um concorrente, uma folha devia estar na rua até as três da tarde; depois das seis não se vendia nada. Mas é provável que, como os outros vespertinos, A Notícia esperasse pelos resultados do jogo do bicho antes de ser impresso.

O jornal, porém, não conseguiu manter a liderança quando, anos mais tarde, teve que competir com publicações populares como o “Jornal do Brasil”, o “Correio da Manhã” e A Noite. Em 1921, Cândido de Campos começou a dirigir A Notícia. Três anos depois, assumiu o controle acionário e mudou sua orientação. Tornou-se abertamente governista e vivia dos subsídios oficiais. Era conhecido como o “jornal cor-de-rosa”, tanto pela cor de seu papel como pelo tom róseo com que noticiava e comentava os atos governamentais; também como “jornal de punhos de renda”, embora fosse agressivo em relação à oposição. Os liberais, afirmava, eram “baderneiros, corruptos castradores da liberdade”; e assegurava que, ao contrário do que se dizia, não havia latifúndios no Brasil.

Como represália a esse adesismo ao governo, ao seu apoio ao presidente Washington Luiz e à defesa da candidatura de Julio Prestes, o jornal foi invadido e depredado em 1930, quando Getúlio Vargas assumiu o poder. Ficou vários anos sem circular. Cândido de Campos refugiou-se na embaixada do Peru, teve que sair do país apressadamente e foi morar em Paris.

Quando voltou ao Brasil, em 1932, Campos lançou um semanário de economia, A Informação. Seis anos mais tarde, depois de ser indenizado pelo empastelamento do jornal em 1930, relançou A Notícia com novo enfoque. Fez um vespertino popular, com abundante cobertura policial, ataques aos “exploradores do povo” e grandes manchetes, conhecidas como “os zincos da Notícia”, pelo enorme tamanho das letras, mas ainda sem as características de jornal de escândalos que teria mais tarde. A redação ficou a cargo de Francisco Octaviano Silva Ramos. Sob sua orientação, tornou-se um dos diários de maior circulação do Rio. O jornal não tinha oficinas próprias. Era composto e impresso nas instalações do “Diário de Notícias”, de Orlando Dantas.

O jornalista Luiz Antônio Villas-Bôas Corrêa, que trabalhou mais de 30 anos em A Notícia, contou como era o jornal.

“Dois ou três copidesques (redatores) ficavam na redação refazendo as matérias, e o resto, a turma da briga, cobria tudo. A única coisa separada no jornal era esporte – separada e desdenhada, porque a turma trabalhava numa salinha e quase não se tinha muito contato com eles.

“Quem dirigia tudo, como já disse, era o Silva Ramos: Francisco Otaviano da Silva Ramos. Fantástico cozinheiro de jornal, em um tempo em que o secretário do jornal acumulava funções que hoje são exercidas por 10, 12 pessoas. O secretário era o editor- chefe, o subeditor, o secretário da redação, o editor de política, o editor de economia, o editor de esporte, tudo passava por ele.

“O jornal funcionava num conjunto de salas num segundo andar da avenida Rio Branco, do tamanho de um apartamento médio de três quartos. A redação era uma sala comprida, com uns cinco, seis metros de frente, dando para a avenida Rio Branco, e uns 15 metros de profundidade. Havia um mesão no meio, onde a maior parte da turma desenhava as matérias na munheca. Alguns, muito poucos, escreviam a lápis, aquele lápis preto Faber nº 1, mas a grande maioria escrevia a caneta tinteiro, e generosamente a empresa fornecia uma tinta vagabunda. (…).

“Lembro-me que se comemorou com um cafezinho quando a tiragem bateu em 100 mil exemplares. (…) A Notícia tinha a pretensão de disputar com O Globo e encostava no Globo, que não tirava muito mais do que 150 mil.”

Ainda segundo Villas-Bôas Corrêa, o jornal adotava uma linha popular, guardando a compostura e a sensibilidade para todos os assuntos, com linguagem comedida e fotos de impacto. Um jornal para o leitor que no fim do dia voltava para casa de bonde.

Reintegração de posse

Cândido de Campos vendeu o jornal em 1950 ao político paulista Adhemar de Barros e ao político carioca Antônio de Pádua Chagas Freitas. Ainda permanece confusa a verdadeira relação entre os dois na compra de A Notícia. A versão mais aceita é de que Adhemar comprou o jornal e colocou Chagas Freitas como sócio minoritário e administrador. No entanto, Zoé Noronha Chagas Freitas, viúva de Chagas Freitas, deu outra versão em carta a O Estado de S. Paulo:

“Meu pai, Matheus Martins Noronha, era empreiteiro e banqueiro no Rio de Janeiro, amigo fraternal de Cândido de Campos, proprietário de A Notícia. Na mocidade, papai tivera um jornal, A República – daí a intimidade com os jornalistas e donos de jornais da época. Meu pai era amigo de Júlio Prestes e Cândido de Campos, compadre de Otavio Mangabeira. Ele os ajudara financeiramente quando os dois foram exilados em Paris, após a Revolução de 1930. Quando Cândido de Campos voltou ao Rio, A Notícia foi empastelada, teve a ajuda financeira de meu pai e voltou a circular no Rio como um jornal vespertino. Já idoso, sem filhos, Cândido foi procurar meu pai para oferecer-lhe A Notícia: – Matheus, ela é sua. Meu pai sugeriu o nome do genro, meu marido: Antônio de Pádua Chagas Freitas. E qual a surpresa de meu pai quando Cândido o procurou dizendo que meu marido oferecera sociedade na compra de A Notícia a Adhemar de Barros. Meu pai, furioso, discutiu com meu marido, por ser contra essa sociedade. Eu também me opusera, por ser meu pai o benfeitor. Felizmente, Chagas Freitas acatou as ponderações do amigo e advogado Egberto Miranda Silva, nosso compadre e amigo, e inimigo de Adhemar, que o fez majoritário na sociedade. Para o meu sossego. Adhemar de Barros não frequentava o jornal nem indicara nenhum diretor ou funcionário. O diretor financeiro era meu tio, irmão de minha mãe, o ‘General Paschoal Marchetti’, e o diretor de publicidade, meu irmão Gerson Martins Noronha. Meus três filhos lá trabalharam. Villas-Bôas Corrêa, o grande jornalista, trabalhara em A Notícia no tempo de Cândido de Campos e lá ficou por 50 anos. Trabalhou em O Dia com o Chagas e não se lembra de ter visto Adhemar no jornal”.

No jornal, Chagas Freitas encontrou uma alavanca para sua carreira política, chegando a governador do Estado do Rio. Dotou A Notícia de instalações gráficas próprias, ao comprar com uma rotativa Walter Scott, e aumentou a ênfase no noticiário político, o que era raro num jornal popular.

Escolheu, como um dos alvos das críticas, o prefeito do Distrito Federal, o general Ângelo Mendes de Morais, que já tinha uma imagem desgastada e era um inimigo fácil. Ao bater num prefeito impopular, A Notícia aumentou sua popularidade. Ao mesmo tempo, glorificava a figura de Adhemar de Barros. A circulação aumentou rapidamente. Em junho de 1951, Chagas Freitas lançou o matutino O Dia – registrado em seu nome –, para aproveitar a capacidade ociosa das novas instalações, tornando-se o jornal de maior venda avulsa do Brasil, com 130 mil exemplares.

Os trabalhos sobre a imprensa costumam afirmar que os jornais populares tiveram pouca influência na vida política. Os fatos os desmentem. Como lembrou o ex-prefeito do Rio César Maia, nas eleições de 1955 para a Presidência da República, Adhemar de Barros ficou em terceiro lugar na contagem geral dos votos. No entanto, foi o mais votado no Rio de Janeiro, resultado que pode atribuir-se à cobertura de A Notícia e O Dia.

Adhemar de Barros, acusado de malversação de fundos como governador de São Paulo, teve que fugir para o Paraguai e a Bolívia, para não ser preso. Segundo uma versão, teria passado a Chagas Freitas, que era seu advogado, suas ações nos jornais cariocas pro forma, temporariamente, e este teria aproveitado a circunstância para apropriar-se deles. Outra versão diz que, durante o exílio de Adhemar, Chagas Freitas convocou uma assembleia para aumentar o capital da empresa. Como o ex-governador paulista não pôde exercer o direito de compra, as ações que lhe correspondiam foram leiloadas e adquiridas por Chagas Freitas por um preço baixo. Uma versão não exclui a outra.

Quando um habeas corpus lhe permitiu retornar ao Brasil, Adhemar abriu um processo pedindo a reintegração da posse, mas, depois de demorada disputa judicial, o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa a Chagas Freitas e obrigou a família de Adhemar, já falecido, a pedir desculpas públicas.

Cansada da luta

A circulação de A Notícia começou a cair em meados da década de 1950, quando Chagas Freitas priorizou O Dia, esvaziando A Notícia, talvez intencionalmente. Passou de 120 mil a 130 mil exemplares de 1951 a 1953 e para 56 mil em 1960, enquanto a de O Dia aumentava. A queda se acelerou nos anos seguintes. A Notícia não tinha redação própria; vivia das sobras do material produzido pela reportagem de O Dia. Chagas Freitas teria adotado essa política para prevenir-se contra uma eventual vitória dos herdeiros de Adhemar na Justiça e ter que devolver-lhes A Notícia.

A revista Propaganda escreveu em 1965 que A Notícia, embora com uma elevada ração de violência, era um jornal mais variado que O Dia e tinha uma apresentação mais cuidada, sua cobertura política era de melhor qualidade e o noticiário internacional mais amplo e melhor coordenado. As páginas feminina e de espetáculos eram bem desenhadas, sóbrias, equilibradas, com ilustrações discretas. Até pareciam deslocadas dentro de A Notícia, segundo a revista. No entanto, a circulação não chegava aos 50 mil exemplares, menos da metade de O Dia.

Constatação parecida foi feita por Alberto Dines. Ele conta que os alunos da PUC- Rio fizeram uma análise comparativa de A Notícia, em 1966, escolhendo uma edição daquele ano e outra do mesmo dia de quatro anos antes. “Verificou-se uma sensível alteração no perfil do jornal: mais notícias internacionais, mais notícias científicas, mais notícias sobre a vida da cidade.” Em quatro anos, o jornal mudara substancialmente seu conteúdo, sem alterar suas características fundamentais. O interessante é que não tinha havido nenhuma ordem para essa mudança. Chagas Freitas, já governador do Rio, se surpreendeu agradavelmente com os resultados. No entanto, continuou dando cada vez menos atenção ao jornal. Quando parou de circular, em agosto de 1979, vendia apenas 40 mil cópias, uma fração da circulação dos anos 50.

Foram feitas várias tentativas de relançamento depois que os dois jornais foram comprados pelo jornalista Ary Carvalho, no começo dos anos 1980. Ele, depois de consolidar O Dia, voltou sua atenção para A Notícia e, em maio de 1991, depois de uma ausência de 12 anos, o jornal foi relançado, tendo o cartunista Jaguar como editor-chefe. Queria oferecer “presunto e lombo” – cadáveres e nus. Ele disse a O Globo: “Havia muito espaço para um jornal popular, mais ‘povão’, com muita mulher nua, ‘presuntos’ e ‘sacanagem’”; um jornal “popular e bem-humorado”. Foi uma fase de muito sexo e muita violência. Manchete do primeiro número: “Vagabundo dá duro no Dia do Trabalho: 26 presuntos!”. Chegou a publicar um nu frontal do jogador argentino Diego Maradona e colocou sua virilidade em dúvida. Eram comuns as fotografias de cadáveres decapitados. Publicava confissões de homossexuais e fotos de casais mantendo relações sexuais. Numa espécie de prestação de serviços, publicava na primeira página fotos de garotas de programa e onde encontrá-las. Uma conselheira sexual escrevia em linguagem chula.

Nessa fase, A Notícia era uma publicação de baixo custo, um subproduto. Tinha uma redação pequena e aproveitava o material que sobrava de O Dia. A circulação cresceu, e chegou aos 120 mil exemplares. Por pouco tempo. Quando as vendas caíram, o jornal aumentou a ração diária de violência. O relançamento não tinha dado certo. Em 1997, quando estava vendendo 45 mil exemplares, foi feita uma nova tentativa, com ênfase no humor, mulher bonita na capa, mas com “tratamento bem menos vulgar”. O formato encolheu, para ser um “tablóide de alta voltagem”. Ainda desta vez, a recepção não foi a esperada.

No ano seguinte, A Notícia passou a brigar com o Extra, um jornal que as Organizações Globo lançaram para tirar leitores de O Dia. O jornal foi totalmente reformulado. A dançarina Carla Perez assinava uma coluna, assim como o ex-jogador de futebol Roberto Dinamite e um humorista do grupo Casseta e Planeta. O apresentador Carlos Massa, o Ratinho, que era também colunista, fez a campanha na televisão: “A Notícia vai matar a pau!”. O Extra custava 25 centavos na banca e A Notícia, 20. O relançamento começou em março; em outubro, cansada de lutar e de perder dinheiro, A Notícia saiu definitivamente das bancas. Seu lugar, como parceira de O Dia, foi ocupado anos depois, em outubro de 2005, pelo tablóide Meia Hora.

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[Matías M. Molina é jornalista e autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo”, em segunda edição]