Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Crônica de uma missão fracassada

Tinha tudo para dar errado. E deu. Comprova-se no depoimento que, pela primeira vez, revelou publicamente a identidade de um dos três sequestrados e torturados por paramilitares da favela carioca do Batan, em 2008: o fotógrafo Nilton Claudino, que o assinou, na edição de agosto da revista piauí (ver “Minha dor não sai no jornal”).

Passou-se mais de um mês e ninguém rediscutiu em páginas de jornais ou revistas a tragédia, ocorrida seis anos depois do assassinato do jornalista Tim Lopes na Vila Cruzeiro. Esse silêncio reflete a dificuldade de lidar com um assunto controvertido: jornalista deve fazer papel de polícia quando a empresa em que trabalha supõe que não há outro caminho para denunciar determinada realidade?

Segundo os “Princípios Editoriais das Organizações Globo”, deve, sim:

“O uso de microcâmeras e gravadores escondidos, visando à publicação de reportagens, é legítimo se este for o único método capaz de registrar condutas ilícitas, criminosas ou contrárias ao interesse público”. (Seguem-se considerações a respeito dos cuidados a adotar etc. Leia aqui o texto completo.)

A experiência recente não aconselharia classificar essa prática como legítima (ilegal, segundo o jurista Dalmo de Abreu Dallari, ela não é). Um jornalista da Rede Globo, Tim Lopes, perdeu a vida, e vários, de diferentes veículos de comunicação, sofreram graves danos à saúde física e mental. Algumas reportagens foram muito úteis, outras não acrescentaram nada de importante ao que já se sabia. A equipe do Dia não chegou a publicar o que apurou em 15 dias no Batan, em Realengo, Zona Oeste do Rio.

Sempre tentador, mas absolutamente questionável, é o jornalista se investir da condição de policial ou de corregedor da polícia. Se a polícia não trabalha direito, ou não trabalha de todo, se há policiais corruptos, não cabe ao jornalista substituí-los, ou enquadrá-los.

Ao jornalista cabe informar a sociedade. Em regime democrático, é dela, presumivelmente, que nasce a exigência de mudanças. O que dá mandato (não eletivo) ao jornalista é sua função de representante da sociedade. Mas ele tem que ostentar sua condição para fazer jus à prerrogativa.

Políticas públicas

Essa restrição não se aplica a reportagens, sem denúncias nominais, sobre agruras de determinados segmentos da população. É quando os repórteres vão morar numa favela, ou na rua, ou fazer determinada viagem, ou trabalhar numa fábrica, numa obra etc.

Nesses casos, quando tudo funciona a contento, cidadãos são alertados para determinados problemas. Denúncias mais graves obrigam autoridades a agir, ou fingir que agem. Mas o que muda as condições sociais são as políticas públicas.

O maior problema criado pela prática de substituir a polícia para flagrar “condutas ilícitas, criminosas ou contrárias ao interesse público” (expressão, esta última, mergulhada em subjetivismo) é acostumar a sociedade a ver na imprensa uma alternativa ao encaminhamento político da questão da segurança pública.

Desvios de função

Se essa concepção fosse levada ao extremo, jornalistas deveriam fazer cursos em academias de polícia. A formação atual deles não os prepara para lidar com bandidos, menos ainda com bandidos que pertencem a uma rede detentora de dados abundantes e precisos sobre qualquer cidadão, inclusive jornalistas. Essa rede é formada pelas diferentes forças da segurança pública.

Quanto aos cidadãos, não precisariam cobrar das autoridades boas políticas e combate às irregularidades e aos crimes funcionais. Bastaria apoiarem o trabalho da mídia redentora. Haveria uma inversão do papel da imprensa: ao invés de politizar (no sentido mais fecundo do termo) a arena pública, estaria despolitizando-a. A rigor, como se trata de empresas jornalísticas, privatizando-a.

Qual era a pauta no Batan?

A narrativa de Nilton Claudino é triste e, por mais de uma razão, assustadora. Não apenas porque escancara a truculência mafiosa dos agressores, sua arrogância, seu desprezo pelo Estado democrático de direito e tudo o que o constitui. Também por conter um repertório de erros profissionais de todos os jornalistas envolvidos na história. Grande dose de amadorismo, numa missão quase suicida.

Claudino não informa a motivação da tentada reportagem. Certamente não teria sido denunciar a existência das milícias. Isso havia sido feito três anos antes, no Globo, por Vera Araújo, em reportagem que, por sinal, lhe custou ameaças de morte (ver “Vera Araújo, a repórter que venceu o medo”).

Duas semanas após o ocorrido, em 1/6/2008, o Dia afirmou:

“A ideia da reportagem era mostrar como vivem as pessoas em um local onde grupo clandestino tem lucro fantástico com a venda do gás de cozinha, do sinal pirata de TV a cabo e da segurança forçada, além do curral eleitoral.”

No próprio jornal,entretanto, esse assunto havia sido exposto no início de 2008 (em 22/1), em reportagem sobre conflitos entre milícia e traficantes pelo controle do Morro do 18, na Água Santa, que registra:

“O novo grupo passou a cobrar mensalmente R$ 100 de mototaxistas, R$ 30 de comerciantes e R$ 10 de moradores. Os milicianos também exigem participação na venda de casas.”

Um mês depois, reportagem sobre indiciamento do então vereador Jerominho como mandante do assassinato de dois policiais militares acrescentava as seguintes atividades em disputa: exploração de caça-níqueis, transporte ilegal e “gatonet” (centrais clandestinas de TV a cabo). Jerônimo Guimarães Filho, do PMDB, seria, com seu irmão Natalino José Guimarães, então deputado estadual pelo DEM, chefe da milícia conhecida como Liga da Justiça. Jerominho está preso.

Infiltração indefensável

Dias depois (3/2/2008), sempre no Dia, uma reportagem mostrava o grau da violência com que traficantes e milicianos disputavam territórios. Os traficantes, segundo policiais de uma delegacia local, “teriam matado quatro milicianos e cortado as cabeças deles”. E, adiante: “Milicianos e traficantes travam uma disputa sanguinária pelo controle de favelas do Rio”.

Foi nesse contexto que O Dia mandou para um reduto miliciano um fotógrafo, uma repórter e um motorista. Seis anos, repita-se, após o assassinato de Tim Lopes e três anos depois de uma tentativa de sequestrar Vera Araújo.

Reportagem bem-sucedida, com as mais contundentes evidências contra as milícias cariocas, já estava em andamento, sem que os autores, João Antônio Barros e Thiago Prado, tivessem precisado se infiltrar em algum território hostil. Com dados de investigações policiais, os jornalistas do Dia foram a cartórios de registro de imóveis do Rio de Janeiro e constataram a espantosa riqueza de chefões mafiosos. O “Dossiê Milícia” (6/7/2008) é o inverso da desastrada tentativa feita no Batan.

A mãe do motorista

Uma das perguntas que muitos jornalistas se fizeram na época foi esta: com que finalidade um motorista, cuja imagem é associada ao carro caracterizado que dirige, participou da missão? A explicação é patética: o motorista tinha sido – e sua família ainda era – moradora da favela escolhida. Uma avaliação correta teria deixado claro que a presença do motorista era contraindicada.

Uma passagem no texto da piauí traduz o caráter aventureiro da operação:

“Todo material que fotografava eu levava para a casa da mãe do motorista, que ficava do outro lado da Avenida Brasil.”

Como assim? O “esquema” de trabalho numa missão tão delicada dependia da mãe do motorista?

É um desses detalhes que fazem o cérebro, numa fração de segundo, voltar o filme todo para trás e captar algo que estava latente e subitamente se condensa num questionamento muito amplo: será que alguma missão desse tipo foi feita efetivamente com segurança?

Peças que não se encaixam

Outros pontos confirmam o grau de improvisação da empreitada.

** Em condições normais, quem chefia uma equipe na rua é a ou o repórter. Nada impede que ela ou ele ouça sugestões, opiniões e conselhos do fotógrafo, e mesmo do motorista, que podem ser veteranos tarimbados. Mas é a ou o repórter que conduz o trabalho. O fotógrafo Claudino era mais do que veterano. Era o chefe do departamento fotográfico do jornal. E a repórter, novata. Não poderia chefiar a reportagem..

** Por que passar relatórios por e-mail, numa lan house, em plena era do celular, dispositivo absolutamente corriqueiro numa favela?

** Por que Claudino disse aos vizinhos que estava esperando um emprego, e não que estava empregado em meio período? Poderia passar parte do tempo na favela, entrar e sair dela diariamente, o que teria tornado fácil seu contato com a Redação. Moradores de favelas não vivem fisicamente confinados. Se o fizessem, se não ganhassem a vida, não tivessem renda, não interessaria aos paramilitares subjugá-los. Por isso as milícias não toleram desempregados.

** O personagem inventado pelo grupo, segundo o relato de Claudino, era um indivíduo resgatado do alcoolismo por sua mulher evangélica, a jornalista. Mas ele diz que aceitou convite dos milicianos para tomar cerveja com eles. Uma coisa não combina com a outra.

Tim Lopes: lições desprezadas

O fotógrafo relata em seu texto que ganhou um Prêmio Vladimir Herzog por uma foto feita ao passar duas semanas com um repórter na Favela da Maré…

“…investigando [ah, esse nome, jornalismo investigativo, talvez mal traduzido do inglês] denúncias sobre o grupo chamado Comando Azul, um grupo de policiais militares metidos a justiceiros que cometiam atrocidades contra moradores e outros bandidos [sic].”

Escreve ainda que o jornalismo o havia levado a diversas situações de risco. Uma em Capitán Bado, no Paraguai, onde andou por uma grande plantação de maconha até ser rendido por um traficante. Outra ao passar 28 dias “viajando em uma investigação sobre o tráfico de cocaína para o Brasil, a partir do Peru e da Bolívia”.

O fotógrafo conta que “o incentivo para o jornalismo investigativo veio do amigo Tim Lopes”, com quem havia trabalhado em diferentes empresas. Tim acabou se transformando numa figura emblemática desse tipo de jornalismo, não apenas pelas reportagens que realizou mas também, infelizmente, pelo fim que lhe coube.

Depois de seu assassinato, a sabedoria da visão retrospectiva recomendava reavaliar todas as reportagens que colocaram vidas de jornalistas em risco, a não ser, claro, em situações nas quais todas as pessoas presentes estavam sujeitas ao pior (manifestações violentas, catástrofes, guerras etc.).

Em certa medida, isso foi feito. Mas a própria tragédia da Vila Cruzeiro não foi examinada, na época, com o rigor necessário. Não se imagine que o assunto foi evitado. Houve debates no país inteiro. Um ano depois do ocorrido, o jornalista Mário Augusto Jakobskind reproduziu neste Observatório uma série de críticas feitas à direção da TV Globo (“Um caso ainda não esclarecido”). Em julho passado, a jornalista Cristina Guimarães declarou ao Jornal do Brasil: “Se dependesse da TV Globo, eu estaria morta”. Repetiu críticas que já estavam no texto de Jakobskind.

Identidades expostas

Não cabe dúvida quanto à inconveniência de se ter designado Tim para a missão que lhe custou a vida. Ele havia sido um dos quatro participantes da reportagem “Feira de drogas”, sobre a desenvolta atividade comercial de traficantes. Os autores não tiveram seus nomes revelados quando ela foi ao ar no Jornal Nacional, em agosto de 2001. Perfeito. Mas a identidade deles acabaria conhecida. Os quatro receberam um Prêmio Esso, no mesmo ano, pela reportagem. Tim Lopes estava na premiação e sua fotografia foi publicada na imprensa.

Após a morte de Tim, uma das preocupações da direção do jornalismo da TV Globo foi evitar a percepção de que a missão atribuída ao repórter fora excessivamente arriscada. O mesmo se repetiu, seis anos depois, no caso dos três sequestrados do Dia.

Mas o passado não morre com seus protagonistas. Cada elemento novo trazido à consciência – como, agora, o relato de Nilton Claudino – modifica as narrativas, desloca nexos de causalidade, pode mesmo levar ao questionamento de marcos consagrados.

A abertura pública desse dossiê e as indagações que ele suscita – elas foram feitas, para a produção deste texto, a profissionais direta e indiretamente ligados aos fatos −, poderia ser boa oportunidade para colocar em xeque toda uma concepção do chamado “jornalismo investigativo” brasileiro. Dificilmente isso ocorrerá. A inércia é muito forte. Mas não custa propor.

Um debate inconcluso

Em 3 de junho de 2008, pouco depois da divulgação do sequestro na favela do Batan, o Observatório da Imprensa na TV debateu o caso (ver aqui o vídeo, dividido em quatro partes). Alberto Dines, ao abrir a discussão, colocou a questão política: “Estamos diante de um motim de paramilitares contra o Estado brasileiro”.

Pediu providências imediatas para interromper a subversão da ordem constitucional democrática. O assassinato da juíza Patrícia Acioli, em 12 de agosto passado, evidenciou que a situação, ao longo dos 50 meses transcorridos desde então, se tornou ainda mais grave.

Os convidados ao programa foram Alexandre Freeland, diretor de Redação do Dia, Maurício Azêdo, presidente da ABI, Angelina Nunes, então presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e editora assistente da editoria “Cidade” do Globo, e o coronel da reserva da PM de São Paulo José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança Pública.

Reportagem de risco

Ouvido em entrevista, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, declarou: “Acho que no mínimo é uma reportagem de risco”. Fora dos microfones, Beltrame comentou que não mandaria uma equipe policial fazer o que a equipe do Dia tentou.

O então chefe da Polícia Civil, Gilberto Ribeiro, reforçou uma ideia no mínimo discutível: “Acho que o jornalista é um investigador por excelência. Então, nada mais natural do que o jornalista fazer esse tipo de trabalho”. Sem negligenciar a segurança, completou.

A presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, Suzana Blass, disse à reportagem da TV Brasil:

“Estamos pedindo comissões de segurança nas redações e eles estão resistentes a esse tipo de abordagem. Sentem isso como intromissão no trabalho deles. Mas precisamos criar políticas, limites de atuação da imprensa em áreas de risco no Rio de Janeiro. Não tem como continuarmos, em nome de denúncia, ou de um furo de reportagem, a colocar a vida de jornalistas em risco.”

O coronel José Vicente criticou:

“Nesse caso, os jornalistas praticamente se infiltraram. Correram um risco muito grande. [….] Esses ambientes se tornam ambientes de cobertura pré-guerra, praticamente. Temos relatos de mortes de inocentes nesses confrontos e também o caso precedente terrível que aconteceu com Tim Lopes.”

Manchete não vale vida

Angelina Nunes apresentou uma alternativa para se trabalhar com risco aceitável:

“Nessa questão da milícia, a gente busca fazer o contato com os moradores retirando-os do local para conversar. Dessa forma você não expõe o morador e também não se expõe a um risco desnecessário. […]Acho que a gente tem que desglamourizar um pouco essa coisa. O repórter não é herói, não é super-homem, não é um Sherlock. Ele precisa relatar o que viu. E, para relatar o que viu, precisa estar vivo, em condições perfeitas.”

Numa segunda rodada, Angelina disse que era necessário denunciar todos os crimes cometidos pelas milícias e as relações delas com a política, mas reforçou que “nenhuma manchete vale a vida de ninguém”.

Precaução ou “capitulação”?

Azêdo, perguntado por Dines sobre até onde pode ir o risco do jornalista, começou por lembrar a recomendação de Assis Chateaubriand a Joel Silveira quando o enviou à Itália como correspondente de guerra, em 1944: “Você está proibido de morrer. Repórter não é para morrer, é para mandar notícias”.

Em seguida, entretanto, disse que…

“…o jornalismo é uma atividade necessariamente de risco. Essa tese de que os jornalistas não podem cobrir certas áreas constitui uma capitulação em relação à obrigação social do jornalismo e da imprensa, que é cobrir todos os setores da vida social. […] É certo que tem que haver uma preocupação especial, curso de treinamento, mecanismos de proteção dos jornalistas, mas a obrigação dos jornalistas é ir à notícia e procurar a coisa irregular e anormal onde ela se encontre, qualquer que seja o risco.”

No terceiro bloco do programa, um telespectador perguntou o que Azêdo achava mais importante: a integridade do jornalista ou transmitir a informação para o público? Em sua resposta, o presidente da ABI voltou-se contra a presidente do sindicato: “Ela é advogada da capitulação em relação à obrigação dos jornalistas de procurar a verdade e noticiá-la onde quer que se encontre”.

Modos e meios de apurar

Na Urna Eletrônica daquela semana, a pergunta deste Observatório foi: “O jornalista deve se arriscar para cobrir a violência?” O “não” foi escolhido por 455 internautas (62%) e o “sim” por 278. A contraposição talvez seja inadequada. O fato é que não existe vínculo obrigatório entre cumprir a missão de informar e estar no local onde ocorre o fato ou processo objeto de apuração jornalística.

Para dar um entre infinitos exemplos possíveis, o repórter não testemunhar um acidente de ônibus numa estrada não o impede de noticiá-lo, de informar sobre sua causa provável, criticar o mau estado das rodovias, a falta de policiamento, a venda de bebidas alcoólicas à margem das rodovias, o uso de estimulantes por motoristas, a corrupção nos órgãos governamentais que cuidam dos transportes e o que mais se considerar relevante para a análise dos fatos.

Uma das mais celebradas reportagens da história do jornalismo brasileiro foi feita pelo já citado Joel Silveira sobre o casamento, em 1945, da filha do conde Francisco Matarazzo Júnior (“A 1002ª noite da Avenida Paulista”, Tempo de contar). Silveira não foi à festa. Não tinha convite. Reconstituiu os “dois dias, três noites e três madrugadas” em conversas com convidados, fornecedores de produtos e serviços e outras fontes de informação.

Na verdade, nenhum dos participantes do programa propôs o silêncio a respeito de determinados fatos, territórios ou grupos sociais. Azêdo não considerou a simples possibilidade, explicitada por Angelina Nunes, de obter informações dos moradores fora de seus locais de residência.

Não se louvará o repórter de gabinete, que foge da vida fora da Redação. Nem o cínico. Mas ter brio profissional não se confunde com uma visão épica da reportagem. Às vezes é mais difícil recusar uma tarefa sem sentido, ou antiética, do que aceitar uma missão que envolve risco desmedido. Isso vale para qualquer profissão.

Novidade inexistente

Dines perguntou a Freeland o que havia de diferente na pauta para justificar o risco corrido pelos jornalistas do Dia. E que descoberta teria levado os milicianos a torturá-los. A resposta:

“O relato que foi trazido mostrou que além da imposição de cobrança clandestina, kit gás, gatonet, alguns aspectos que já haviam sido levantados em reportagens anteriores, existia por trás daquilo um grande projeto de poder. A repórter foi convocada a participar de um censo, para fazer um levantamento, para esta eleição agora, eleição municipal, e entregar um cadastro para um determinado candidato. O comentário explícito, na comunidade, era de que só um candidato poderia fazer campanha ali.”

Ora, se o cadastramento de eleitores foi informação trazida pela repórter, não poderia estar na pauta. Além disso, em 2008 já era conhecida a ligação entre milícias, polícia e política. Foi o ano em que o Ministério Público e a Polícia Federal acusaram o ex-chefe da Polícia Civil Álvaro Lins de procurar apoio em áreas dominadas por milícias.

Sensacionalismo

O que move as chefias, na maior parte do tempo, é uma coceira chamada sensacionalismo. Cargo de chefia é cargo de confiança. A confiança do dono da empresa no profissional envolve a aptidão deste para conquistar audiência, logo publicidade, logo rentabilidade.

Ninguém louva abertamente o sensacionalismo. É sempre menos espinhoso levantar a bandeira do compromisso com a sociedade. No frigir dos ovos, porém, o móvel se chama concorrência.

O que mais surpreende, a respeito da matéria de capa da piauí de agosto, é que ela não tenha tido a menor repercussão na mídia. “Não consigo entender a razão disso”, diz o diretor-responsável da revista, Mario Sergio Conti.

O Estado de S.Paulo (8/8) publicou uma nota que não entra, nem poderia entrar, no mérito da operação jornalística. Destaca uma denúncia política:

“Um deputado estadual pelo Rio de Janeiro e seu filho, vereador, são acusados de participar de uma sessão de tortura de uma equipe do jornal carioca O Dia, capturados por membros de uma milícia (quadrilha de policiais) na favela do Jardim Batan, em 14 de maio de 2008.”

Provação infrutífera

Sem fazer apuração adicional, apenas baseado no texto do artigo, o Estadão reproduziu a denúncia de Claudino de que a milícia chegou até a equipe devido a uma delação feita por um colega do Dia.

Essa acusação não é aceita por jornalistas familiarizados com o episódio. É negada por Alexandre Freeland, em nota enviada ao Observatório da Imprensa como resposta a um questionário que lhe foi proposto (ver abaixo).

As vítimas não foram levadas a exame de corpo de delito e se pediu ao fotógrafo, segundo relato deste, que corroborasse a versão de que sofrera uma queda andando a cavalo. A nota do Dia permite depreender que isso decorreu de recomendação das autoridades superiores da segurança pública. O fato é que não existe nos autos do processo judicial exame de corpo de delito.

Deve ser assinalado que a direção do Dia, tanto quanto foi possível ao Observatório da Imprensa apurar, deu aos dois jornalistas e ao motorista a proteção e o apoio indispensáveis para que eles tentassem reconstruir suas vidas. Não lhes será fácil, evidentemente – como reitera o texto de Claudino na piauí −, remover as cicatrizes psicológicas deixadas pela excessiva provação.

A matéria apurada nas duas semanas em que os três do Dia viveram no Batan não foi publicada. Quinze dias depois da volta dos jornalistas e do motorista, O Dia revelou a violência usada contra eles e usou, sob o título “Ditadura da banda podre”, informações obtidas na favela de Realengo.

Foi uma das seis páginas do especial “Política do terror” (1/6/2008), que ganhou o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha de 2008. Assim, uma trágica tentativa, que produziu escassos resultados jornalísticos e muitos danos a três pessoas, pôde ser exibida pelo jornal como um galardão.

***

Nota enviada ao Observatório da Imprensa pela direção do jornal O Dia:

1. Desde o sequestro e tortura da equipe de O Dia, em maio de 2008, as identidades das vítimas dos milicianos do Batan vêm sendo preservadas por veículos de imprensa, entidades de defesa dos jornalistas e da liberdade de informação, órgãos governamentais e autoridades policiais e da área da Justiça.

“Todas as informações sobre o trabalho de reportagem foram prestadas às autoridades policiais, ao Ministério Público e à Justiça no decorrer das investigações e do processo. O sigilo foi decisivo para a condenação dos principais envolvidos no crime. Hoje, ele é importante para a segurança de testemunhas e vítimas que não tiveram nem desejam ter suas identidades reveladas.

2.Como desde o primeiro momento havia a suspeita de envolvimento de policiais no crime contra os jornalistas, a equipe foi orientada a se apresentar e repassar informações EXCLUSIVAMENTE à Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco-IE) e a nenhum outro órgão policial ou da estrutura da Secretaria de Segurança. A Draco-IE foi encarregada do caso diretamente pelo secretário estadual de Segurança, José Mariano Beltrame, imediatamente após ser informado do episódio pela direção do jornal. Um dos condenados, conforme se comprovou, era policial.

3.Jamais foi constatado −pela polícia, pelo Ministério Público ou pela Justiça −que a equipe teria sido delatada por colegas de trabalho. O fotógrafo que assina a reportagem na Piauí continua até hoje funcionário da empresa e há cerca de um ano retomou suas atividades profissionais. Todas as garantias de apoio jurídico e psicológico às vítimas e a seus familiares diretos, inclusive fora do Rio do Janeiro, estão sendo prestadas pelo jornal.

4.Descobrir e denunciar crimes e irregularidades que ameaçam os direitos humanos e a democracia talvez sejam algumas das mais nobres missões do jornalismo. Não se faz isso apenas publicando trechos de investigações policiais, do Ministério Público e da Justiça. Os crimes cometidos contra a equipe de O Dia não foram um atentado a uma equipe de repórteres ou a um jornal em particular. Foram um atentado ao próprio jornalismo.

5.O relato da brutalidade sofrida pela equipe de O Dia foi publicado, pela primeira vez, nas páginas do jornal, em junho de 2008, logo após a conclusão da primeira etapa da tomada de depoimentos das vítimas, quando o jornal já havia providenciado a saída dos jornalistas do Rio de Janeiro. Nessa ocasião também foi publicada a reportagem revelando como era a vida dos moradores do Batan com os serviços públicos, comércio e outras atividades econômicas sob o controle dos milicianos (edição do jornal O Dia de 1º de junho de 2008).”