Saturday, 05 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Faltou um ‘despacho saneador’

‘Despacho saneador’ é ato pelo qual um juiz limpa um processo de seus vícios formais. Não visa ao mérito, à substância do pleito, e sim aos aspectos processuais, ditos ‘adjetivos’. Em jornalismo, pode-se ‘sanear’ uma matéria – artigo, notícia, reportagem, editorial – pela crítica de seus procedimentos técnico-formais na revelação do fato social. A atitude pronta e imediata de um editor diante de uma matéria defeituosa é algo como ‘manda apurar!’

Todo esse lamentável imbróglio entre o jornalista Larry Rohter e o governo brasileiro ressentiu-se da falta de um bom despacho saneador. Desde o começo, bem entendido. É que os defeitos técnicos só foram apontados após a danosa repercussão da matéria publicada. Tratando-se de assunto desairoso para com o presidente de um importante país latino-americano, deveria ter recaído antes sobre o editor do New York Times, e não (posteriormente) sobre seu ombudsman, a responsabilidade de se dar conta da desonestidade em tentar corroborar o conteúdo do texto com uma imagem (o presidente Lula na Oktoberfest de Santa Catarina, com uma caneca de cerveja na mão) protocolar, deslocada de seu contexto celebratório.

À flagrante desonestidade da foto, acrescenta-se a incompetência jornalística no que diz respeito à apuração e relato dos fatos. Em primeiro lugar, a nação não havia revelado nenhuma preocupação com qualquer suposto excesso alcoólico do presidente da República. Em segundo, ao relatar as insinuações de figuras públicas (em técnica de jornal, diz-se ‘fonte de segundo grau’, do ponto de vista do repórter), a matéria deveria ter informado que se tratavam de adversários notórios do presidente, o que daria ao público receptor a liberdade de interpretar o eventual viés malicioso das declarações.

Primor de desacerto

Não estivesse o New York Times imbuído dos preconceitos ou do desprezo que as elites do Império costumam dedicar aos povos ao sul do Equador, poderia ter publicado a mesma matéria – preservando a sua tão apregoada liberdade civil de expressar-se por um meio de comunicação social – apenas resguardada por cuidados formais, inteligíveis por qualquer cidadão, inteligente ou não.

Afora os já mencionados cuidados com a apuração, o jornal poderia simplesmente ter esclarecido que as fontes para a sua informação sobre o tippling (embriaguez por efeito de bebericagem, termo menos grosseiro do que boozing, por exemplo) presidencial já eram públicas, tanto off the records nos meios jornalísticos e políticos de Brasília quanto em textos publicados. Um destes últimos é o artigo da colunista Miriam Leitão, que havia associado os alegados disparates verbais do presidente Lula à ‘mistura entre o copo de uísque e o improviso’ (O Globo, 1º/5/2004).

Assim, do ponto de vista da realidade objetiva dos fatos, o problema da verdade ou do falseamento jornalístico quanto ao tippling de Lula é de natureza, digamos, mais processual do que substancial. Ainda que verdadeiro, o jornal poderia ter tido a decência de lembrar (por meio da famosa ‘retranca’, ou background information, como queiram) o saudoso Winston Churchill, um dos grandes líderes do mundo ocidental contra o Terceiro Reich, que era, aquele sim, um pinguço inveterado, desses que gritam por Genésio, em vez de Jesus. Ou então do russo Boris Yeltsin, mais recente, apontado pela própria imprensa local como bêbado de cair. E de Bush – ex-alcoólatra confesso, que diz comunicar-se com Deus, sem um pingo (nenhum trocadilho) da grandeza de Churchill –, nem falar.

Se nada disso interessou ao jornal é porque já tem uma imagem pronta do país e de suas lideranças. Aliás, não é só o New York Times, a se crer na afirmação do jornalista e escritor Roberto Pompeu de Toledo: ‘A Rede Globo só faz minissérie sobre a história do Brasil se tiver sexo, bagunça, um rei bobão, rainha devassa’ (Nossa História nº 3, Editora Biblioteca Nacional).

E por falar em rei, rainha e Corte, faltou também despacho saneador no lado brasileiro. Faltaram, na verdade, competência e coragem (é preciso coragem para ser conselheiro nos momentos de onipotência dos monarcas) por parte de assessores ou de outras figuras que circundam o presidente. Houve a exceção do bom profissional Ricardo Kotscho, que foi voto vencido. Os outros, a se tomar ao pé da letra suas declarações publicadas na imprensa, foram simplesmente inacreditáveis.

A frase do porta-voz André Singer (‘presidente, acertamos na mosca’) é um primor de desacerto. O que nos vem à cabeça é uma historinha de competição entre grandes atiradores. O primeiro, um alemão, munido de um rifle de alta precisão, acerta o fundo de uma garrafa a meio quilômetro de distância; o segundo, um caubói americano, lança ao ar uma dúzia de moedas e, com dois revólveres nas mãos, fura todas, antes que caiam; o terceiro, um mexicano de chapelão e botas largas, saca da arma enorme, reluzente e atira numa mosca que passa voando. Observam-lhe: ‘A mosca continua voando!’. E ele: ‘Si, pero pobrecita, no se reproducirá jamás!’

Herança melacólica

Cabe uma anedota dessas em assunto tão sério? Achamos que sim, apoiados em Freud, que tratou o chiste como fenômeno de processo primário, isto é, esse em que predominam as metáforas e os deslocamentos de sentido.

Os personagens dessa comédia de erros pareciam estar agindo sob o efeito de processos primários. Em seu vôo, aquela mosca metafórica deve ter toldado a visão do líder do PT na Câmara Federal, o deputado Arlindo Chinaglia, que conseguiu enxergar em Larry Kohter um ‘porta-voz das trevas de um movimento golpista’. Perturbou também a lógica argumentativa do ministro Luiz Gushiken: ‘Se ele estivesse no Japão e tivesse ofendido o Imperador, também seria expulso’.

Aí, a mosca tornou-se sintomaticamente azul – não é preciso sequer recorrer a Freud para interpretar a evocação do Império como desejo de poder autoritário. Mas há também um desconhecimento pitoresco (já que o responsável deve ser nissei ou sansei) da cultura japonesa: no tempo em que o Imperador do Japão era mesmo reverenciado como descendente do Sol, seria muito mais provável que, flagrado por estrangeiros em situação comprometedora, se sentisse compelido ao seppuku.

Há um fundo grotesco nisso tudo: a decisão precipitada de expulsão do jornalista, o recuo atabalhoado (já que não houve realmente desculpas formais do jornal), os conselhos deprimentes dos assessores, a clara inadequação de certas pessoas para os papéis de primeiro plano que desempenham na vida republicana.

Do episódio, sai arranhada a imagem do presidente Lula. Não por insinuações de bebericagem, mas por sua associação intempestiva ao texto do Estatuto do Estrangeiro, resíduo do regime militar, ainda vigente em nossa vida dita democrática.

Arranhões dessa natureza costumam ser danosos à ficha impoluta daqueles que se tornaram conhecidos pela luta em prol de direitos sindicais e civis. Lula, francamente, não merece o dano. Há, entretanto, um modo urgente de reparação: que ele aproveite a oportunidade para pôr fim ao entulho autoritário, herança melancólica da ditadura. Basta enérgico um ‘despacho saneador’ político.

Só assim a ‘mosca’ não se reproduzirá jamais.