Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

“Incelença” para acalmar a imprensa

A cobertura dos desdobramentos da crise financeira de 2008, no decorrer da semana, pode ser traduzida num tipo de enunciado que se reproduziu em veículos impressos e eletrônicos como se fora um mantra. Observe-se o lide do repórter José Roberto Burnier (Jornal Nacional, TV Globo, edição de 8/8/2011), a respeito do movimento da Bolsa de Valores de São Paulo:

“Perto das 15h30, o índice chegou a cair 9,74%. Se alcançasse -10%, o mercado seria fechado por meia hora. Usado para esfriar a cabeça dos investidores e impedir uma queda ainda maior, o mecanismo de defesa não foi necessário, mas o mercado continuou em pânico” (grifos nossos).

Não é exatamente novo esse esforço extra para mimetizar o deus Mercado, tratando-o como um ser provido de atributos humanos: medo, nervosismo, pânico, calma, preocupação, confiança ou desconfiança… Na escuridão de um jornalismo submisso, vassalo e absolutamente superficial, do ponto de vista informativo e analítico, todos os investidores são pardos. Inexiste especulação, jogatina, ambição desmedida que são a “alma dos negócios” nos mercados financeiros e bolsas de valores na Aldeia Global. No fim, perdem de fato os otários, investidores pessoas físicas que atuam com os nacos de informações captados aqui e acolá.

O fim está próximo

A baixa qualidade da cobertura, sobretudo nos telejornais das emissoras abertas, foi tão marcante que o economista Roberto Macedo (ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e presidente do IPEA), comentarista do Jornal da Record News (edição de 8/8/2011) apontou: a imprensa não publicou, até aqui, informações substanciais sobre a oscilação dos preços das commodities, como soja, petróleo e café que impactam diretamente o resultado das exportações brasileiras.

Além desse viés ideológico, assumidamente a essência do jargão dos agentes de mercados financeiros, um leitor/telespectador/ouvinte interessado em obter algum tipo de interpretação e/ou análise crítica ficaria apenas no desejo. Na cobertura vassala e submissa, não cabem vozes discordantes, nenhuma dissonância é permitida. Senão vejamos no olhar sui generis de Míriam Leitão (Bom Dia Brasil, TV Globo, edição de 10/8/2011), que vaticinava:

“A comentarista Míriam Leitão falou sobre a decisão do Banco Central americano (FED), que, nesta terça (10), não fez exatamente o que o mercado queria, que era um relaxamento monetário, uma nova ingestão de moeda na economia. Segundo Míriam, o BC teve uma visão pessimista em relação à economia. Pessimismo que acalmou o mercado: o BC americano está sabendo que a situação é grave” (grifos nossos).

Entre a perplexidade e o pânico, o apresentador Renato Machado conseguiu prever uma espécie de “armagedon” para o dia 9 de agosto, quando se esperava um mergulho mais radical nas supostas perdas dos valores das ações no mercado de capitais. Apregoava Machado (Bom Dia Brasil, TV Globo, edição de 9/8/2011):

“Está todo mundo preocupado. É crise nas maiores economias do mundo, nas bolsas de valores, nas empresas e na vida de muita gente. O que vai acontecer com o Brasil e o mundo?As bolsas de valores voltaram a derreter nesta terça-feira (9). O pânico tomou conta dos investidores na segunda-feira (8). Foi o pior dia para os mercados desde a crise de 2008” (grifos nossos).

A essa chamada cataclísmica, seguiu-se um diálogo entre a apresentadora Ana Luíza Guimarães e o repórter Marcos Uchôa (correspondente em Londres), que ilustra ainda mais a incorporação da linguagem dos financistas no texto jornalístico:

“– Uchôa, como está o ânimo dos investidores? [Ana Luíza]

– Os mercados continuam mal na Europa. Abriram em forte queda, mas já deram uma melhorada. A Bolsa de Frankfurt estava em -5,7% e fechou em -3%. Paris opera com -1% e hoje pode ser o 12º dia de baixa. Itália fechou em -1,5%, também um recorde negativo se continuar assim” (grifos nossos).

O mundo não acabou

Os indicadores das bolsas iriam desmentir, poucas horas depois, as previsões de Renato Machado. A Bolsa de Nova York fechou em 4% de alta e a Nasdaq (de tecnologia) com número positivo de 5%; a Bovespa BM&F 5,1% registrando a maior alta desde 2009, com um montante negociado na casa dos R$ 10,3 bilhões. Restou ao apresentador Guto Abranches (Conta Corrente, GloboNews, edição de 9/8/2011, às 19h30) reconhecer: “Pois é, o mundo não acabou, que bom. Hoje as principais bolsas de valores do mundo fecharam em alta, algumas em alta bastante forte”. E um perplexo Abranches indagava: “O que é que mudou de ontem para hoje? Praticamente ou absolutamente nada”.

Outro exemplo desse mimetismo está no mesmo telejornal (Bom Dia Brasil, edição de 11/8/2011), desta vez no texto do jornalista Jorge Pontual, cobrindo o movimento da Bolsa de Valores de Nova York, na véspera:

“O que mais influiu para a queda de quarta-feira (10) na Bolsa de Nova York foi a situação da França. As ações do maior banco francês, Société Générale, chegaram a cair 20%, mas fecharam com perda de 15% depois que o banco desmentiu estar em dificuldades. Correram rumores na Europa e nos Estados Unidos de que a França estaria prestes a perder a nota máxima, AAA, para seus títulos. Mas as três agências de classificação de risco confirmaram a nota da França. Nem isso acalmou os investidores” (grifos nossos).

Nem mesmo a decisão da Standard & Poor’s (S&P), agência de classificação de crédito, de rebaixar a nota dos títulos da dívida americana, foi capaz de trazer ao noticiário dos telejornais figuras como o economista Paul Krugman, prêmio Nobel e articulista entre outros dos jornais Folha de S.Paulo e Estadão. A respeito dessa decisão escreveu Krugman em sua coluna no portal de O Estado de S. Paulo:

“A S&P, juntamente com as demais agências de classificação de crédito, desempenhou papel importantíssimo na precipitação dessa crise, concedendo notas AAA a ativos lastreados em hipotecas que desde então se transformaram em lixo tóxico. Mas as avaliações incompetentes não pararam por aí. Num episódio agora famoso, a S&P concedeu ao Lehman Brothers, cujo colapso deu início a um pânico global, uma nota A até o mês da sua quebra. E qual foi a reação da agência depois que esta empresa foi à falência? Ora, a S&P publicou um relatório negando ter feito qualquer coisa de errado. (…) Espere só, a coisa não para por aí. Antes de rebaixar a nota da dívida americana, a S&P enviou ao Tesouro dos EUA um rascunho do seu comunicado à imprensa. Os funcionários americanos logo repararam num erro de US$ 2 trilhões nos cálculos, algo que qualquer especialista em orçamento teria calculado corretamente. A S&P reconheceu o erro e rebaixou a nota mesmo assim.”

É do jornalista Sidnei Basile, ex-diretor de Redação da revista Exame, falecido recentemente, a indagação de fundo sobre a cobertura econômica: fazemos jornalismo para o mercado ou para a cidadania? E respondia: “Cidadãos não são clientes; são cidadãos. Notícias são notícias e não ‘serviços ao consumidor’” (in Elementos de Jornalismo Econômico, 2002: p. 36). O autor cita ainda os pesquisadores Downie e Kaiser (p. 41): “O mau jornalismo (e isto é radical na cobertura econômica – grifo meu) pode deixar as pessoas perigosamente mal informadas”.

Ao final de tanta predição em torno do juízo final, a partir do “tombo” ou “derretimento” das Bolsas, resta cantar uma novena acompanhando a voz grave de Dorival Caymmi em “Velório”:

“Uma incelença entrou no paraíso/ Adeus, irmão, adeus/ Até o dia de juízo…”

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[Samuel Lima é docente na UnB, professor visitante na UFSC e pesquisador do objETHOS]