Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

M.F. é melhor que Deep Throat

O secretário de redação do Washington Post em 1972, Howard Simons, entrou para o rodapé da história pela fina sacada de dar à misteriosa fonte do repórter Bob Woodward na cobertura do caso Watergate o nome de um filme pornô que, este sim, entraria para a história do gênero.


Mas, revendo o que se conhece dos bastidores da mais importante reportagem investigativa de todos os tempos – e deles decerto nem tudo se conhece –, talvez o apelido seja mais instigante do que revelador. Ao contrário do primeiro, de autoria de Woodward.


Revelador, bem entendido, do que talvez seja o aspecto jornalisticamente decisivo da situação que tornou possível a um par de repórteres de segunda linha da editoria local do Post – respaldados por um extraordinário diretor de redação e por uma supercorajosa dona de jornal – armar a forca para um presidente dos Estados Unidos da América.


Na cronologia do épico, esse aspecto antecede a transformação de William Mark Felt (que por alguma obscura razão se assina W. Mark Felt) em Garganta Profunda.


Começa em 1970, quando o Wood do compósito Woodstein (sendo Stein, naturalmente, Carl Bernstein), segundo-tenente da Marinha, ex-aluno de Yale e futuro foca de um jornalzinho em Maryland, a uma pedrada de distância de Washington, recebeu ordem de levar um documento da Arma à Casa Branca.


Desde que ele produziu três páginas para o Post da quinta-feira (2/6), contando a sua relação com Felt, ficamos todos sabendo o que aconteceu naquele dia que um adjetivador apressado chamaria certamente de memorável.


Coisa de jornalista


O estafeta da Marinha e o já importante tira do FBI se encontraram por acaso. Este, segundo Wood, puxou conversa. A primeira lembrança do jovem oficial é tão banal como poderia ser. ‘Ele tinha 25 ou 30 anos mais do que eu e carregava o que parecia ser uma pasta.’


Feitas as apresentações, Felt ‘não mostrou interesse em alongar a conversa, mas eu insisti’, conta o repórter. E insistiu a ponto de ficar sabendo que o outro era vice-diretor do FBI encarregado da Divisão de Inspeções, que vigiava organizações clandestinas (como os Weathermen, de extrema-esquerda, que ele perseguiria nos anos seguintes).


Não está claro se àquela altura da vida Woodward já tinha resolvido seguir carreira jornalística, ou se apenas queria se achegar a um figurão da polícia federal americana. O fato é que ele fez uma coisa que – sem retórica – iria mudar a sua vida para sempre. Coisa de jornalista.


Pediu, obteve e não fez cerimônia de usar o número de telefone do relutante interlocutor – cujo interesse por ele ‘parecia algo paternal’ – quando arranjou seu primeiro emprego de repórter (depois de um desastrado estágio de duas semanas no mesmo Post que mais adiante ele cobriria de glórias).


Esse é o momento decisivo da trama. Adeptos da história contrafactual escreveram que se o todo-poderoso chefão do FBI, J. Edgar Hoover, não tivesse morrido um mês antes de Felt vazar dicas sobre o Watergate, em junho de 1972, este não ousaria abrir a boca e aquilo que a Casa Branca de Nixon descrevera como ‘um roubo de terceira categoria’, no comitê do Partido Democrata, provavelmente teria ficado por isso mesmo.


Mas o que importa de verdade é que se Woodward não tivesse feito amizade com Felt, freqüentando a sua casa e tratando-o com a deferência que um aprendiz de jornalismo devia a um pezzonovante do FBI, Hoover poderia ter morrido quando morreu e, acontecesse o que acontecesse a Nixon, Woodstein não existiria.


Discussões ociosas


A mídia americana gastou todo o espaço e o tempo que achou que valia a pena gastar discutindo se Felt foi herói ou vilão.


Herói, por ter ajudado a desmontar um governo cujo presidente era chamado de Tricky Dicky (Ricardinho Trapaceiro) e fazia por merecer o apelido, a ponto de não hesitar em pôr o intocável FBI a serviço de suas jogadas sujas.


Vilão, por ter feito o que fez por despeito, ressentimento, para se vingar do presidente que não o nomeou, como ele imaginava, para o lugar de Hoover.


Podia-se também discutir se Woodward cultivou Felt porque o admirava e desenvolvera um afeto filial por ele ou porque – como todo jornalista que se preze – tinha faro para saber a quem era bom se achegar como fonte importante em potencial.


As duas discussões, a esta altura, são ociosas – a menos que o seu subtexto seja a América de Bush. Por patriotismo ou para se vingar, Felt fez bem para os Estados Unidos. Por sentimento genuíno ou para subir na profissão – dizem, e é verdade, que um repórter é tão bom quanto a sua caderneta de telefones –, Woodward fez bem para o jornalismo.


E agora fica claro por que o codinome inicialmente dado pelo jornalista à sua fonte secreta – M.F., iniciais de My Friend – é menos glamouroso e mais apropriado do que Deep Throat.


O que os unia era a amizade – ou os sinais exteriores da amizade entre um moço obsequioso e um senhor poderoso. Não se pode perder de vista que Felt não era uma fonte ‘em off‘ de Woodward, em sentido estrito, alguém que vaza informações sem assumir de público a sua paternidade.


Desde a primeira vez que Wood, encarregado de cobrir o que tinha tudo para parecer um fato ‘local’ – o arrombamento de um escritório político no complexo Watergatge em 17 de junho de 1972 – pediu ajuda a Felt, três dias depois, este continuou a exercer, numa escala incomparavelmente maior, o papel de seu mentor.


O segundo homem do FBI não fornecia aspas sem atribuição ao repórter. Fornecia-lhe dicas, pistas – ‘siga o dinheiro’ viria a ser a mais célebre de todas.


O fator decisivo


Mas nada disso teria ocorrido ou prosperado se não houvesse entre eles o proverbial pacto tácito de confiança – a pedra de toque entre todo jornalista e as suas fontes anônimas.


OK. Welt deve ter revirado de todas as maneiras a ficha de Woodward para apostar que ele lhe seria leal. Mas de aposta se tratava, porque entre as fraquezas humanas está a de falar o que não se deve. O risco que Welt decidiu correr era imenso.


O seu protegido poderia ser um túmulo, mas como saber se o seu parceiro Bernstein, com quem o segredo tinha sido compartilhado, também era?


E se o diretor de redação Ben Bradley, unha-e-carne com a família Kennedy, deixasse escapar que Deep Throat era um alto funcionário do FBI, numa conversa com Ted Kennedy, altas horas de um sábado, na casa de praia dele em Hyannis Port, Massachusetts, quando ambos já estivessem igualmente altos? (Bradley só soube quem era o Garganta depois que Nixon renunciou.)


Na outra ponta do problema, que certeza poderia ter o calouro Woodward de que não estava comprando de Felt o equivalente a um Cartier made in Ciudad del Este? Seja porque o tipo do FBI pensava que sabia o que se passava mas na realidade não sabia. Seja, pior ainda, porque era peça, digamos involuntária, de uma operação republicana destinada a desmoralizar de uma vez por todas o pró-democrata Washington Post.


Há um deliberado exagero nessas hipóteses. Mas extremam-se as coisas para ressaltar o que há de mais crítico em toda relação repórter-fonte, mesmo com aquela que fala ‘em on‘: a confiança. Mesmo ‘em on‘, sim, porque repórter não é taquígrafo, nem jornal (ou revista) é tábula rasa.


Para ficar no caso du jour, já imaginaram com que cara ficariam a Folha de S.Paulo e a jornalista Renata Lo Prete se ficasse provado que tudo o que o deputado Roberto Jefferson disse a ela e o jornal publicou do jeito que publicou não contiverem 1 grama de verdade?


Felt tinha que confiar em que Wood e companhia bela protegeriam o seu nome não só enquanto o caso durasse, mas também até que a morte o separasse deles.


Os jornalistas cumpriram o trato – no essencial, porque ninguém é perfeito. Em 1999, um colegial disse ter ouvido do filho de Carl Bernstein, Jacob, 11 anos antes, quando ambos tinham oito, que o Garganta era aquele que viria a sair do armário, aparentemente por dinheiro, por meio do artigo que o seu advogado escreveu para a nova edição da Vanity Fair. (A mão-de-obra que isso deve ter dado ao copidesque da revista mensal!)


O Super-Homem é… Clark Kent


Mas ninguém teria ganho muito se fosse a uma casa de apostas de Londres jogar as fichas no nome de Felt. Não que ele fosse, como se dizia aqui, pule de 10, mas o seu nome de há muito estava em todas as listas de quem teria dado com a língua nos dentes ao abelhudo do Post.


Numa das infames fitas de gravação que afinal desgraçaram Nixon se ouve o Tricky perguntando para o seu chefe da Casa Civil, H. R. Haldeman, se Felt era católico. Haldeman disse que ele descendia de judeus irlandeses. Ao que Nixon emendou: ‘Vai ver é coisa dos judeus, sei lá. É sempre uma possibilidade.’


E, como o New York Times arrematou o seu editorial sobre o assunto, ‘é um pouco como descobrir que a identidade secreta do Super-Homem era, bem – Clark Kent’.


No fim, se alguém rompeu o pacto de honra, passados 33 anos, não foi nenhum jornalista do Post, mas o nonagenário (e de duvidosa lucidez) W. Mark Felt. Fonte é capaz de tudo.


Este leitor dá a Carl Bernstein, que nunca viu Felt a não ser semana passada, pela TV, a penúltima palavra: ‘Essa é uma lição de manual sobre a importância de se ter fontes confidenciais. Aquelas matérias não teriam sido feitas sem fontes anônimas – nem qualquer boa reportagem em um porção de lugares’.


Que se lembrem disso os zelotas que acham que todo off é um crime de lesa-leitor.


[Texto fechado às 21h48 de 6/6]