Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O efeito-dominó das imagens

A imprensa noticiou – sem muita ênfase, é verdade – que professores norte-americanos vêm fazendo sérias ressalvas à cobertura televisiva do massacre na universidade da Vírgínia. Consideram que a disseminação livre ou ‘descontrolada’ das imagens do acontecimento poderia suscitar novos comportamentos anômicos dessa mesma natureza, uma espécie de efeito-dominó da catástrofe.

É difícil estabelecer relações de causa e efeito quando se trata da coexistência do mundo virtual com a realidade sócio-histórica, mas o fato é que a nação norte-americana, ainda traumatizada pelo massacre na Virgínia, assistiu quatro dias depois ao episódio do engenheiro espacial da Nasa que se entrincheirou num prédio, em Houston, para fazer dois reféns, matar um deles e se suicidar. Na verdade, segundo os jornais, este foi apenas o caso mais grave de um dia marcado por ameaças de bombas e de ataques a tiros contra escolas em Nova York, Nova Jersey, Minnesota, Califórnia, Washington, Arizona e Texas.

O temor quanto ao efeito-dominó parece, assim, ter alguma razão de ser. Há algum tempo, a pesquisadora francesa Marie-José Mondzain, indagando-se sobre a possibilidade de que um crime tenha encontrado o seu modelo nas ficções audiovisuais, dizia que, em sua realidade sensível e suas operações ficcionais, as imagens ‘se colocam a meio-caminho das coisas e dos sonhos, num entre-mundo, um quase-mundo, onde se dispõem talvez as nossas servidões e as nossas liberdades’.

‘Ponto de existência’

Situar-se a meio caminho entre a representação e o real é propriamente a condição da mídia contemporânea, onde tudo é da ordem do quase: quase-presença, quase-verdade, quase-real e, por que não, quase-mente. O conceito acadêmico de quase-mente parece materializar-se na tecnologia avançada da comunicação, constituída por máquinas de computar e de representar.

Uma hipótese instigante para isso tudo é a do sistema nervoso central funcionando fora do corpo humano. Algo parece ‘pensar’ fora da subjetividade clássica (tanto a televisão quanto a informática operam processos dinâmicos, análogos a operações mentais), ao mesmo tempo em que se organiza uma realidade feita de imagens táteis, capazes de repetir com verossimilhança as rotinas do cotidiano tradicional e, assim, produzir uma forte sensação de realidade.

Por esse caminho de uma humanidade artificial se orienta o padrão comunicacional em que a imersão – envolvimento dos sentidos na simulação de um ambiente tridimensional – do indivíduo é a regra principal. Trata-se de algo mais do que um mero tecnicismo do contato entre a mídia e seu público. É uma absorção que leva o indivíduo a viver virtualmente no espaço imaterial das redes de informação, teleguiado pelo mercado. Mais do que simplesmente visual, o contato que se estabelece é tátil, entendido como interação dos sentidos a partir de imagens simuladoras do mundo.

Vem daí a sensação de se ocupar um ponto qualquer numa ambiência ou numa ‘paisagem’ feita de ‘matéria’ audiovisual ou de compressão numérica em altíssima velocidade. Esta é a idéia do ‘ponto de existência’ (em vez do ‘ponto de vista’), que permitiria ao indivíduo encontrar uma posição física em meio aos sentidos tecnologicamente prolongados.

Efeito da falta de convivência

A sociedade norte-americana é aquela que, em nossa contemporaneidade, mais se aproxima dessa descrição de uma realidade recoberta por mídia e mercado. E tal modelagem tecnológica do mundo não é impermeável, muito pelo contrário, às características históricas e psicossociais de constituição do povo norte-americano – um povo de guerreiros e comerciantes, com aspirações hegemônicas sobre o resto do mundo.

A instilação coletiva do medo (tida por Hobbes como a emoção fundamental) ao Outro (seja o estrangeiro ou o vizinho) faz parte de estratégias contemporâneas de controle de comportamentos que baseiam seus recursos retóricos na cultura da velha propaganda política. São claros exemplos disto os filmes de catástrofe norte-americanos, assim como toda uma literatura de grande consumo voltada para a acentuação paroxística dos temores sociais e, ao mesmo tempo, o culto às armas que, nos Estados Unidos, se associa à violência física e mental.

A retórica do bode expiatório (cuja fonte de conhecimento mais antiga é o Levítico, no Antigo Testamento), isto é, a invenção de alguém a quem se atribuam as culpas latentes e manifestas no grupo social, é atualíssima para os grandes demagogos no mundo inteiro, mas é um mecanismo forte nos Estados Unidos, onde a extrema-direita elege como alvos os cidadãos não-brancos, em especial negros e hispânicos.

Nada impede, porém, o reverso da moeda, ou seja, que a minoria constitua objetos idealizados (a plenitude da cidadania branca, o paraíso artificial do campus escolar etc.) como objeto coletivo da expiação. Este último é investido por emoções negativas, de modo a que se configure como um ‘Outro’ em que se cristaliza a incerteza ou o Mal.

A violência é o efeito natural da falta de convivência (a democracia define-se aí como o respeito jurídico às diferenças, mas não como aproximação real entre elas) entre os numerosos grupos diferenciados, em geral conotados como guetos.

O contágio ‘virótico’ das imagens

Cho Seung-Hui, o autor do massacre na Virgínia, era filho de coreanos, logo, membro de um grupo existencialmente guetificado, embora juridicamente respeitado. A imprensa pode representá-lo como psicótico, mas também é possível concebê-lo, além da hipótese de psicopatia, como uma presa do sofrimento típico de alguém cujas únicas identificações reais se fazem com a mídia. Seu ‘ponto de existência’ transportava-o da incomunicação do gueto à comunicabilidade livre das imagens ficcionais dos videogames e da televisão.

É possível que se visse como um loser (perdedor), e nada pior do que isto numa sociedade em que mídia e mercado divide o mundo entre perdedores e vencedores. A arma fácil, ao alcance da mão na esquina mais próxima, é o argumento extremo.

É certo que, como frisamos, tudo isso diz respeito aos traços da sociedade norte-americana. Mas no tocante ao contágio ‘virótico’ das imagens televisivas, ou mesmo à cobertura sensacionalista dos jornais, vale a pena começarmos a botar as barbas de molho. Já se vem observando que comportamentos violentos ocorridos no Rio de Janeiro e transmitidos tais e quais pela mídia instantânea são replicados com a mesma crueza por parte de pequenos marginais em outras cidades do país.

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro