Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O PIG e a verdade

Muitos blogs tratam a grande imprensa nacional como PIG. Ela formaria o Partido da Imprensa Golpista. É uma denominação tão imprecisa quanto a situação que esses blogs usam como razão para atacar a imprensa, como se ela fora um bloco monolítico empenhado em derrubar um governo constitucionalmente estabelecido, só por ser exercido pelo Partido dos Trabalhadores. Manifestação de um ranço elitista incontrolável.

O qualificativo generalizador só teria validade se os críticos encontrassem provas – ou, pelo menos, evidências convincentes – da articulação golpista, como a que houve antes do golpe militar de 1964. Precisaria haver um entendimento materialmente comprovado de que os donos da mídia brasileira agem com a intenção de derrubar o governo.

O que está acima de qualquer dúvida é a sua oposição aos governos de Lula e de Dilma Rousseff, ou, no mínimo, má vontade, predisposição negativa e preconceito, mesmo quando foram beneficiados por atos – genéricos ou específicos – dos dois presidentes da República. Essa aparente contradição (levar dinheiro e ainda assim manter posições e concepções editoriais) seria até benéfica se a pedra de toque da cobertura da imprensa fosse o respeito aos fatos, a rigorosa apuração das informações, a amplitude da abordagem e o respeito ao contraditório.

Cada vez menos é assim. As matérias jornalísticas violam regras elementares da objetividade e do rigor para inocular nos textos qualificativos e juízos de valor, desnaturando a reportagem em editorial. O editorial é forma legítima e necessária de manifestação, mas no seu espaço devido, com a caracterização necessária para alertar o leitor de que se trata de opinião da empresa. Reportagem é o domínio do repórter. Ainda que ele esteja sujeito a vários tipos de circunstâncias, ele devia ser sempre o responsável pela integridade da matéria.

Apuração preliminar

A revista Veja tem se afundado no lodaçal desse tipo de jornalismo – marrom, amarelo, sensacionalista, tudo menos cristalino, como água da fonte, que devia ser a sua matéria-prima. Ainda assim, ela não comanda um PIG. Sua concorrente mais direta (e muito mais nova), a Época, se lhe parece, mas se distingue também. Não pode ser envolvida pela mesma camisa de força dos blogs neo-oposicionistas (ou, na atual balbúrdia ideológica e política, críticos dos críticos).

Veja-se como exemplo mais recente e importante a polêmica reportagem que denuncia Lula como operador. O texto bem que podia ter sido expurgado de expressões como “pupila”, quando a palavra correta é sucessora (o que Dilma foi), ou evitar declarar o ex-presidente como “o lobista em chefe do Brasil”, classificação sem o rigor exigido para o seu uso.

No entanto, trata-se realmente de uma reportagem, que se espalha por oito páginas da revista semanal, apenas três (para o padrão Veja de “encheção de linguiça” com recursos gráficos, que preenchem o vazio de informações) com ilustrações. Os dados foram apurados em várias fontes, inclusive fora do país, e apontam fatos que sustentam a qualificação de Lula como lobista da Odebrecht, empreiteira nacional que faturou 100 bilhões de reais no ano passado, parte da receita obtida no exterior (de onde a empresa diz que trouxe 1,28 bilhão de dólares em divisas para o Brasil).

O ex-presidente devia ter mais cuidado para não aproximar demais, como tem feito, sua condição de viajante/palestrante pelo mundo ao financiamento dessas excursões e os interesses corporativos subjacentes. Lula tem todo direito de cobrar por suas palestras, mas elas deviam ser gratuitas e em defesa de uma causa mais nobre quando o anfitrião paga sua hospedagem e deslocamento. O ideal seria que o preço da sua apresentação incluísse o valor dessas despesas para lhe dar a condição que ele devia cultivar: não só ser honesto, mas parecer honesto – como a mulher de César (no caso, ele seria mesmo César, o que certamente haverá de considerar comparação mais justa).

Também é prerrogativa natural do ex-presidente promover os negócios brasileiros no exterior, desde que não haja nenhuma articulação vantajosa de um particular tendo por fundamento dinheiro público. Época cita fatos que lhe permitem considerar como triangular as operações realizadas pelo ex-presidente em países africanos e latino-americanos, onde tem influência pessoal. Sempre os negócios fechados nesses lugares contam com a assistência do BNDES, com seus empréstimos de custo inferior ao de marcado. Sem impor condições como as que o Eximbank da Coreia do Sul exigiu da mineradora Vale, duas semanas atrás, ao lhe conceder financiamento de 2 bilhões de dólares. O recurso tem que ser aplicado em transações com empresas coreanas.

A matéria da revista da Editora Globo não consegue caracterizar como delituosas as relações de Lula com a Odebrecht porque não há provas de ganho pessoal do ex-presidente ou de uma conexão de causa e efeito entre sua participação, os contratos de prestação de serviço conseguidos pela Odebrecht no exterior e os empréstimos do BNDES. Faltam essas informações para caracterizar o crime de tráfico de influência ou qualquer outro, que o Ministério Público Federal do Distrito Federal apenas começou a apurar, em caráter preliminar, por provocação externa, o que serviu de “gancho” (ou mote) para a matéria de Época.

Às claras

Faltam muitas informações não só por alguma incapacidade de apuração da revista, mas também porque o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social não é transparente. Mantém sigilo sobre essas transações, sigilo que agora está prestes a ser rompido pelo Parlamento. A abertura dessas caixas pretas só fará bem à revelação da verdade, que devia interessar a todos: ao PIG, ao anti-PIG, a Lula e todos mais, imaginários ou reais.

A verdade se prova e a ela se chega pela demonstração dos fatos e das suas circunstâncias ou contextos. A reportagem de Época não se enquadra como instrumento usado por uma imprensa que quer derrubar o governo. Ela é o exercício do jornalismo, que deve ser livre o bastante para dizer o que apurou (ou o que quiser dizer) e abrigar as contestações, assumindo a plena responsabilidade pelo seu conteúdo.

Não deve ser assim a democracia que queremos, sem golpes e sem a síndrome das conspirações, à completa luz do dia perante a opinião pública?

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)