Sunday, 12 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O que está acontecendo com a imprensa?

Passou quase despercebida na grande mídia brasileira a notícia, publicada na The Economist [‘Why top universities are getting interested in journalism’, 23/3/2005], dando conta de que a tradicionalíssima Universidade de Oxford instalou um grupo de trabalho para estudar a criação de um Instituto de Jornalismo, cujo objetivo principal é colaborar na melhoria do padrão do jornalismo inglês.


Em princípio parece apenas mais uma notícia. Mas não é. E pelo menos por duas razões importantes.


Em primeiro lugar, a notícia por si só revela algo inédito. Num país onde não se exige formação acadêmica específica para o exercício profissional de jornalista, é muito significativo que uma de suas mais tradicionais instituições de ensino se preocupe com a qualidade do jornalismo a ponto de criar um espaço institucional para o tratamento acadêmico do tema.


Em segundo lugar, a também tradicional The Economist, uma das mais influentes porta-vozes do pensamento liberal, ao dar a notícia apresentou uma explicação inusitada sobre as causas da perda de qualidade do jornalismo inglês. Segundo a revista, ao contrário dos Estados Unidos, onde os jornais desfrutam de uma situação de quase-monopólio local, na Inglaterra a estrutura do mercado faz com que dez jornais nacionais tenham que competir diariamente por leitores. E é essa competição que levaria à degradação da qualidade do jornalismo.


As razões de Oxford


O que teria provocado tamanha preocupação da Universidade de Oxford? Segundo The Economist, três teriam sido as razões principais:


** A futilidade (silliness) da imprensa, sua obsessão com as fofocas sobre celebridades e os escândalos artificialmente produzidos. Esse comportamento teria contaminado toda a imprensa, não estando mais restrito aos tablóides sensacionalistas.


** A invasão da privacidade. O desrespeito à vida privada das pessoas teria se generalizado como prática jornalística.


** O descompromisso com a verdade. Mentiras teriam passado a fazer parte do cotidiano do jornalismo.


As três razões apontadas têm sido analisadas no contexto da atual crise ética e de qualidade do jornalismo. Como tive a oportunidade de comentar no prefácio de Jornalismo Virtual: o colapso da razão ética (Editora Fundação Perseu Abramo, 2005, veja remissão abaixo), Bernardo Kucinski aponta o fim da demarcação entre jornalismo e assessoria de imprensa; a fusão mercadológica entre notícia, entretenimento e consumo; a crescente manipulação da informação por grupos de interesse; a concentração da propriedade e, principalmente, a mentalidade que celebra o individualismo e o sucesso pessoal como as causas imediatas dessa crise que, aliás, não é exclusiva da Inglaterra. É ela que leva a uma prática profissional cada vez mais distante do antigo ideal de compromisso do jornalista com o interesse público.


O discurso da The Economist


Quanto às explicações da The Economist, há de se perguntar inicialmente: seria fato que o jornalismo americano está imune à ‘silliness’, à invasão da privacidade e ao descompromisso com a verdade?


Por outro lado, não há dúvida de que a revista atribui à competição pelo leitor a causa para a perda de qualidade do jornalismo inglês. Ops! Um momento. Mas isso não é exatamente o contrário do que diz a doutrina liberal sobre a mídia e sobre a formação de uma opinião pública autônoma, informada e democrática? Estaria The Economist – baluarte do liberalismo – defendendo mercados monopolistas como condição para a prática do bom jornalismo?


Dois fenômenos interligados


Na verdade, a notícia e a forma como a notícia foi ‘explicada’ pela The Economist são emblemáticos de dois fenômenos interligados dos nossos dias: a inequívoca perda de qualidade do jornalismo – que se faz acompanhar do que Kucinski apropriadamente chamou de ‘colapso da razão ética’; e a crescente concentração da propriedade no setor – que, por sua vez, se faz acompanhar de um discurso justificador.


Empresários do setor de mídia – como Fernão Lara Mesquita, do Grupo O Estado de S.Paulo – têm lucidamente debitado à própria imprensa parte importante da responsabilidade na ‘corporatização’ da mídia, processo iniciado nos Estados Unidos e em contínuo desdobramento por outros países, inclusive o Brasil [ver abaixo remissão para o artigo ‘A ameaça da imprensa ‘corporate’’, publicado na edição nº 311 do OI].


As conseqüências desse processo – sobretudo para a democracia – é hoje o que mais preocupa analistas e estudiosos do setor. Em maio próximo, por exemplo, um grande seminário estará sendo realizado no Institute of Communications Research da University de Illinois, nos Estados Unidos, exatamente para debater o tema ‘Pode a liberdade de imprensa sobreviver à ‘corporatização’ da mídia?’ (Can Freedom of the Press Survive Media Consolidation?).


Ao atribuir à competição entre os jornais ingleses a razão para a má qualidade do jornalismo que praticam, The Economist indiretamente sustenta que a situação de quase-monopólio dos jornais locais americanos – ou de concentração da propriedade – favorece a produção de um jornalismo de melhor qualidade. Num tempo em que a principal característica do setor de mídia é a sua consolidação nas mãos de uns poucos grupos globais, a posição de The Economist constitui, também indiretamente, um discurso justificador dessa consolidação.


Ao que tudo indica, portanto, a preocupação dos acadêmicos de Oxford com a qualidade do jornalismo inglês deve ir além do próprio jornalismo e se estender para o que está acontecendo na economia política do setor – ou o que está acontecendo na economia política do capitalismo globalizado.


A qualidade do jornalismo, como se vê, não é questão simples. Compromisso ético na prática profissional esbarra na estrutura da propriedade e nos interesses empresariais da mídia. Considerar o jornalismo apenas como mais um ‘negócio’ (business) disputando espaço no mercado, como faz a grande mídia apesar de suas inúmeras contradições, não seria uma parte importante do próprio problema?


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Em tempo: O Diário Oficial da União de quinta-feira (7/4) publicou o Decreto 5.413, de 6/4/2005 alterando o Decreto 5.371, de 17/2/2005, que criara as RTVIs, objeto de nosso comentário na edição nº 318 deste Observatório [remissão abaixo]. Mais uma vez prevaleceram os interesses contrários à democratização da comunicação no país. Sem comentários.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)