Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O rei está nu?

O imbróglio envolvendo a divulgação de mais de 251 mil documentos pelo site WikiLeaks continua rendendo debate no meio jornalístico, político e nas casas de arapongagem aqui e alhures. Das muitas repercussões, positivas ou negativas, destaco uma delas: a exposição total da nudez do jornalismo investigativo praticado pela mídia tradicional, outrora ‘rei do bem’ na peleja contra o ‘dragão do mal’ representado pelo Estado moderno.


Sem embargo, o site de Julian Assange é uma fonte secundária de informação. Não produz reportagens, apenas publica informações compiladas e repassadas por outras fontes, em geral off, sustentadas por interesses difusos. Até o final da semana passada, somente o jornal inglês The Guardian condenara, em editorial, o cerco que o criador do WikiLeaks estava sofrendo, especialmente quanto à controvertida acusação de ‘estupro’ feita por duas mulheres suecas com as quais ele supostamente transara sem camisinha (sic).


O teórico espanhol Manuel Castells, em artigo publicado no La Vanguardia, considera o caso WikiLeaks como uma espécie de ‘ícone da polêmica sobre o livre fluxo de informações na internet’. Nesta perspectiva, parece que estamos diante de um ponto de reencontro entre ‘velha’ e ‘nova’ mídias, na vertigem da convergência digital. Alguns setores da imprensa estão claudicando, ante ao furacão Assange, a começar pelo ‘museu de novidades’ cristalizados no discurso da mídia tradicional.


‘Jornalismo científico’


A questão que aflora é uma só: quem de fato ‘fala’ em nome da sociedade? Assange com suas 265 milhões de palavras ou aqueles que, unificados sobre interesses corporativos e/ou geopolíticos operam na sua satanização mundial? A pesquisadora Cleofe Sequeira (in ‘Jornalismo investigativo’) relativiza o papel do jornalismo investigativo, mas ainda crê em seu poder de ‘guardião da sociedade’, desde que as ‘instituições oficiais’ funcionem a contento.


O WikiLeaks pulverizou esse mito e, paradoxalmente, associado às empresas tradicionais de mídia, escolhidas a dedo, realizou até aqui o maior vazamento de informações supostamente confidenciais, ditadas pela geopolítica americana ao redor do planeta. As informações foram veiculadas nos principais jornais do mundo, a saber: The New York Times, dos Estados Unidos, El País, da Espanha, Le Monde, da França, The Guardian, da Inglaterra, e o semanário Der Spiegel, da Alemanha.


É do jornalista Janio de Freitas, uma das poucas vozes a condenar a tentativa de criminalização de Assange e sua WikiLeaks, uma análise fundamental:




‘É de liberdade de informação que se trata. É do direito dos cidadãos de saber o que seus governos dizem e fazem sorrateiramente, no jogo em que as peças são as comunidades nacionais. É de jornalismo que se trata’.


O editorial do The Guardian completa o raciocínio de Freitas:




‘O principal crime de que WikiLeaks poderia ser acusado é o crime de ter declarado a verdade à cara do poder. O que está em jogo é nada menos que a liberdade da Internet. Tudo mais é pirotecnia para distrair a atenção da batalha real que se combate hoje’.


A despeito das segundas ou terceiras intenções do site e seu fundador, que jura praticar um tipo de ‘jornalismo científico’ (que ‘permite ler uma história nas notícias, a seguir clicar online para ver o documento original em que é baseada’), o acontecimento mundial, político-midiático detonado por Assange e seus colaboradores deve deixar marcas profundas na forma de fazer jornalismo, na era da sociedade da informação e do conhecimento.


Direito fundamental


O que fica patente, num breve olhar sobre a imprensa tradicional, nas diferentes mídias no caso brasileiro, é uma estranha e indiferente apatia. O jornalista Washington Araújo, em artigo recente no Observatório da Imprensa (‘O furo e a ética do coletivo‘) supôs que se o centro político da crise fosse Brasília, e não Washington, a reação teria sido diametralmente oposta – e barulhenta, com capas fartas e muito material editorializado. Talvez não tivesse suscitado, como de resto é o quadro atual, nenhuma atitude investigativa digna de registro. O rei ‘Midas’, apanhado em flagrante na falta de hábito de investigar seriamente o poder, se quedou nu – e passou a repercutir as acusações que desqualificam Julian Assange e sua WikiLeaks.


Pouco antes de sua prisão, o australiano de 39 anos, programador autodidata, tratado como ‘jornalista’, disse, em tom de blefe ou ameaça, que ainda tem cinco gibabytes de documentos secretos e que vai divulgá-los em breve. O jornalista Carlos Castilho calcula que isto ‘equivale mais ou menos a uma pilha de documentos em folhas de papel com 45 metros de altura’ (ver ‘Wikileaks: tiro no pé?‘). Enfim, trata-se de um verdadeiro arsenal para alimentar a polêmica em torno de uma questão extremamente relevante ao futuro da sociedade democrática global: a liberdade de informação é um direito humano fundamental e alicerce de todas as liberdades às quais estão consagradas as Nações Unidas (Resolução nº 59 da Carta das Nações Unidas, 1946).

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Jornalista, docente da Faculdade de Comunicação da UnB, colaborador-docente do curso de jornalismo da UFSC e pesquisador do objETHOS