Wednesday, 15 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Sem isenção nem profissionalismo

Depois de longo e tenebroso inverno, resolvi dar uma conferida na Veja para verificar se tinha voltado a ser uma revista, e não aquilo que se tornou ao longo da década que se finda: um house organ da mais troglodita direita do Brasil. Negativo. Na edição 2194, o que encontrei foi a lavagem cerebral de sempre: mentiras sobre Cesare Battisti (incrivelmente, a Veja ainda mantém a derrubada versão de sua autoria em quatro mortes, inclusas as duas quase simultâneas ocorridas em localidades distantes entre si, como se ele tivesse o dom da ubiquidade!), tentativas de exumar o cadáver político do Serra, loas à ocupação militar das favelas cariocas, a costumeira satanização do Chávez etc.

Isto era o esperado. Surpreendente mesmo foi sua mediocridade jornalística mesmo em assuntos neutros. Parece, por exemplo, ser o único veículo brasileiro que desconhece o motivo principal da ruptura do jogador Kaká e sua esposa com a Igreja Renascer: o desabamento do teto de um templo paulistano, matando fiéis, e a descoberta de que a fiscalização havia sido subornada para não embargar aquele imóvel inseguro.

E uma tal Isabela Boscov, incumbida de fazer um necrológio de duas páginas de Mario Monicelli, não só destacou Meus Caros Amigos – de preferência a obras mais personalizadas desse prolífico diretor italiano –, como zurrou que tal filme ‘já se chamou também Quinteto Irreverente (sic!)’.

Ou seja, ela viajou na maionese por ignorar aquilo que tinha obrigação de saber. Primeiramente, que Meus Caros Amigos era um projeto do diretor Pietro Germi, grande nome do neo-realismo. Germi escreveu o roteiro e se preparava para filmá-lo quando uma cirrose hepática o afastou do trabalho (e acabaria por provocar-lhe, adiante, a morte). Então, o que Monicelli fez, na verdade, foi dar respeitosa continuidade àquilo que havia sido delineado pelo mestre – a quem o filme seria postumamente dedicado. Vai daí que Meus Caros Amigos, lançado em 1975, é muito mais uma comédia pungente e nostálgica, ao estilo de Germi.

A mediocridade dos que posam de críticos

Quanto a O Quinteto Irreverente, trata-se, na verdade, da sequência de Meus Caros Amigos, lançada em 1982 e, esta sim, uma fita característica de Monicelli: bem menos melancólica e mais corrosiva, sarcástica. Para quem é do ramo, a diferença de estilos salta aos olhos. Aliás, além do Amici Miei (Meus Caros Amigos) e do Amici Miei atto II (O Quinteto Irreverente), há também um agônico Amici Miei atto III, de 1985, dirigido por Nanni Loy.

Constatando a crassa falta de informação da dita crítica de cinema da Veja, veio-me à lembrança o extraordinário Rubem Biáfora, que durante mais de 30 anos exerceu com profissionalismo exemplar a função, em O Estado de S. Paulo. Não só fazia uma verdadeira militância cinematográfica – utilizava seu espaço, prioritariamente, para aproximar os leitores das obras-primas da sétima arte, relegando a segundo plano a tralha comercial –, como tinha extremo rigor no tratamento das informações. Naqueles tempos pré-computador, arquivava de forma complicada suas anotações sobre cada filme, grafadas com letra miudinha em papel-de-seda e sempre atualizadas. Era comovente vê-lo quase encostar o nariz no texto para conseguir enxergar o que estava escrito, com sua vista fraca.

Crítico principiante, às vezes eu lhe pedia informações de que estava muito necessitado. Ele ia pesquisar e, cerca de meia hora depois, retornava a ligação, respondendo ao que eu perguntara e acrescentando uma enorme profusão de dados que, a seu ver, poderiam me ser úteis.

A mediocridade dos que hoje posam de críticos deve fazer o velho Biáfora revirar-se na cova…

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Jornalista e escritor