Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Uma conveniente amnésia jornalística

Quem acompanhou com atenção a cobertura do ‘caso Isabella’ – a menina de 5 anos que morreu após ser jogada da janela do apartamento de seu pai, em São Paulo, na noite de 29 de março de 2008 – deve se lembrar de um vídeo de animação que a TV Globo exibiu com exclusividade, já quando o noticiário sobre o crime havia arrefecido, após um mês e meio de cobertura sistemática.


Em 20 de julho daquele ano, o Fantástico anunciava ‘conclusões aterradoras’ sobre o assassinato da menina, de acordo com o vídeo produzido por uma empresa de computação, a pedido do Instituto de Criminalística de São Paulo, a partir dos laudos periciais e do depoimento de uma testemunha que teria presenciado os fatos.


Seria, como é evidente, uma peça fundamental da acusação. Curiosamente, agora, ao longo da semana que antecedeu o início do julgamento, esse vídeo foi praticamente ignorado pela TV Globo, merecendo apenas breve menção diluída em meio às notícias sobre os preparativos para o que foi chamado, indistintamente, de ‘o julgamento do ano’, ‘da década’ e mesmo ‘do século’ – o que talvez não seja tão exagerado, visto que o século ainda está bem no começo.


À parte as tolas especulações de sempre, como os prognósticos quanto aos resultados, as (óbvias) expectativas da mãe da criança, a reprodução do ambiente em que se realizará o julgamento, a escolha dos jurados e tudo o que daí decorre, o noticiário investiu sobre as estratégias de defesa e acusação e alardeou como ‘grande novidade’ da promotoria a exibição da maquete do prédio e do apartamento de onde a menina foi jogada.


O vídeo só entrou em cena na segunda-feira (22/3), quando o julgamento começou. Foram pequenos trechos, exibidos em edições do Em Cima da Hora, da Globo News, e no Jornal Nacional: cenas de animação em que Alexandre Nardoni joga a filha violentamente contra o solo, e logo em seguida a sua mulher – que se convencionou chamar de ‘madrasta’ – agride a menina, tentando esganá-la. Porém, o mais relevante, como se verá, continuou de fora.


A testemunha-chave


Se um dos compromissos ao mesmo tempo fundamentais e elementares do jornalismo é a preservação da memória, e se os jornalistas que trabalham atualmente no caso são os mesmos que iniciaram essa cobertura, há dois anos, como explicar essa súbita amnésia sobre uma peça tão essencial para a acusação, às vésperas do tão aguardado julgamento?


É importante recordar: o vídeo é relevante não tanto pelo que mostra – e o que mostra poderia ser objeto de uma série de críticas, como as que fiz em artigo apresentado em congresso acadêmico em novembro de 2008 (ver ‘`O crime que chocou o Brasil´: mídia, justiça e opinião pública na primeira fase do caso Isabella Nardoni‘) –, mas porque afirma categoricamente a existência de uma testemunha dos fatos. É o que diz o texto de abertura da animação: ‘Os personagens presentes não possuem características idênticas dos envolvidos, da testemunha e da vítima’.


Não caberia dúvida: a testemunha do que ocorreu no interior daquele apartamento só poderia ser o meio-irmão de Isabella. Não só pela lógica elementar, mas também por esta afirmação do promotor, em entrevista veiculada no dia seguinte no Jornal Nacional: ‘Tudo foi feito baseado numa prova colhida de maneira bastante decente e vai ser certamente objeto de apreciação popular por ocasião de um julgamento’.


Considerando que a decência na coleta de provas deve ser um procedimento básico em qualquer inquérito, nada explicaria o realce a tamanho zelo caso a testemunha não fosse uma criança.


Seja para o jornalismo sério, seja para o jornalismo que vive de explorar sensibilidades, teríamos um prato cheio de pautas: é lícito recorrer ao testemunho de uma criança? Qual o valor desse depoimento? Uma criança pode acusar os próprios pais? Que terríveis conflitos emocionais viveria, nessas condições?


Um esquecimento conveniente


No entanto, em nenhum momento a Globo, que teve a exclusividade sobre o vídeo, investiu nessa história. Pelo contrário, respeitou o promotor, que afirmava a existência de ‘outras provas’ a serem apresentadas ‘no momento oportuno’.


Eis que chega o tão aguardado momento, mas, ainda assim, ninguém se lembra desse episódio, divulgado com tanto alarde há um ano e meio. Por quê?


Descartadas as hipóteses de incompetência ou incúria, improváveis entre jornalistas com tantos anos de experiência, resta sugerir que, neste caso, a reportagem faz o jogo da promotoria. O que é visível desde o início do inquérito: uma análise detalhada da cobertura demonstra que os jornalistas sustentaram como definitivas provas que logo seriam postas em dúvida ou substituídas por outras, mas em momento algum fizeram autocrítica, por mínima que fosse. Porque assim é o show: esquecem-se as premissas básicas do jornalismo com o rigor na apuração das informações para se privilegiar a excitação do clamor público contra o que seria uma monstruosidade – o assassinato de uma criança pelo próprio pai.


A propósito, é interessante apreciar o comportamento de um dos mais famosos repórteres da Globo, entrevistado semana passada no programa Entre Aspas, da Globo News, ao lado de um renomado advogado paulista, sobre as perspectivas quanto ao julgamento que se aproximava: comedido, sereno, ele apontava as muitas precipitações nas conclusões sobre os laudos periciais que incriminavam os acusados. Conclusões que, entretanto, ele próprio ajudou a disseminar, quando, incisivo, produziu suas matérias com base em documentos aos quais – como de praxe – ‘teve acesso’.


Por que todo esse senso crítico só se manifestou agora, foi o que faltou perguntar.

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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)