
(Foto: Reprodução de imagem do trailer do filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles)
Em sua última coluna no jornal Folha de S. Paulo, “Direita, celebre ‘Ainda Estou Aqui’!“, o colunista Joel Pinheiro da Fonseca supostamente se propõe a conclamar os leitores do campo a que chama de “direita” a uma superação da polarização na política partidária, em prol da valorização de objetos como a “arte, talento, orgulho nacional e mesmo valores universais”. No entanto, a forma como seu texto é estruturado deixa transparecer que a finalidade do articulista não é a aparente crítica à polarização política, mas a de reforçar uma aparência dela que sirva como recurso discursivo e ferramenta de atração da atenção.
Para pôr essa estratégia em movimento, na primeira parte do texto o articulista constrói a imagem da polarização política que lhe é conveniente recorrendo ao uso de falácias, distorções e falsas simetrias, para, então, nos dois parágrafos finais, colocar-se como emissor de um pretensioso apelo ao bom senso e à civilidade – uma espécie de bombeiro altruísta do incêndio discursivo por ele mesmo provocado.
Identifica-se esse movimento na oposição que o colunista faz entre, de um lado, a trajetória política alinhada à ditadura de Jair Bolsonaro e os posicionamentos de políticos bolsonaristas diante da vitória do filme “Ainda Estou Aqui” no Oscar, resumidos no sexto e sétimo parágrafos do texto, e de outro, o trecho de uma entrevista do diretor Walter Salles, citado com aspas à guisa de contraponto no parágrafo seguinte. Para demonstrar que o cineasta representaria, à esquerda, polo simétrico e oposto ao dos políticos de extrema direita mencionados nos parágrafos anteriores, o articulista distorce a fala do cineasta e a insere numa argumentação grosseiramente falaciosa. Escreve o seguinte:
O próprio Walter Salles, é verdade, esticou a corda da polarização ao redor do filme ao dizer, numa entrevista, que “…durante quatro anos, o país virou para a extrema direita e nunca teríamos tido a possibilidade de filmar durante esse período”. Não explicou, contudo, qual ato do governo Bolsonaro inviabilizaria a filmagem.
Para que a fala de Salles seja moldada à caricatura da polarização política que vai servir à sua conclusão e pareça simetricamente oposta aos posicionamentos do próprio Bolsonaro e dos políticos bolsonaristas nos parágrafos anteriores, Fonseca imputa a ela duas falsas equivalências. Na primeira, toma a sentença “durante quatro anos, o país virou para a extrema direita e nunca teríamos tido a possibilidade de filmar”, na fala de Salles, como equivalente a “durante o governo Bolsonaro nunca teríamos tido a possibilidade de filmar”, que serve ao seu propósito. A partir dessa primeira distorção, engata uma segunda ao insinuar que, não havendo ato (oficial) do governo Bolsonaro impossibilitando o filme, a inviabilidade apontada por Salles seria uma falsa acusação ao seu governo, uma forma de “esticar a corda”, de tensionar, intensificar a polarização política.
Essas distorções feitas por Fonseca resultam de dois silogismos falaciosos, construídos a partir da combinação propositada de premissas válidas com falsas equivalências, que podem ser descritos assim:
Premissa 1: O governo Bolsonaro foi de extrema direita.
Premissa 2: Walter Salles disse que a “a virada do país para a extrema direita durante quatro anos inviabilizou a filmagem de Ainda Estou Aqui naquele período”.
Conclusão falaciosa 1 (non sequitur): Walter Salles acusou o governo Bolsonaro de inviabilizar a filmagem de Ainda Estou Aqui.
Premissa 3: Não houve ato oficial do governo Bolsonaro que tenha impossibilitado a filmagem de “Ainda Estou Aqui”.
Premissa 4 (conclusão falaciosa 1): Walter Salles acusou o governo Bolsonaro de inviabilizar a filmagem de Ainda Estou Aqui.
Conclusão falaciosa 2: Walter Salles acusou falsamente o governo Bolsonaro de impossibilitar a filmagem de Ainda Estou Aqui e, com isso, “esticou a corda” (tensionou, expandiu, pôs força) da polarização política.
Para servir-se da primeira falácia, instrumental, Fonseca precisa ignorar ou omitir que a sentença “durante quatro anos, o país virou para a extrema direita e nunca teríamos tido a possibilidade de filmar”, na fala de Walter Salles, é muito mais ampla que a sentença “durante o governo Bolsonaro nunca teríamos tido a possibilidade de filmar” e que ela pode dizer respeito, por exemplo, às possibilidades de criação e circulação da obra, considerada a conjuntura daquele específico período histórico – que era de virada à extrema direita do país ou da sociedade brasileira em seu conjunto, para além do governo Bolsonaro.
Para chegar à segunda falácia, principal, além de usar a primeira como pressuposição, Fonseca desconsidera que o constrangimento potencial à realização da obra “durante aqueles quatro anos de virada à extrema direita” não ocorreu apenas por atos e omissões oficiais, mas também pela utilização ilegal e clandestina de estruturas do Estado para impulsionar campanhas de desinformação e ataques coordenados a pessoas e instituições (bem documentada na investigação do “gabinete do ódio” pelo STF) e pela contaminação do espaço público de produção e circulação do discurso político, da arte e dos bens culturais – onde também é travada a luta pela memória, verdade e justiça de que trata o filme – pela atmosfera torpe daquele período.
É o uso dessa argumentação falaciosa e distorcida que permite ao articulista da Folha reduzir a fala de Salles a uma falsa polaridade simétrica com as posições do próprio Bolsonaro e dos políticos bolsonaristas nos parágrafos anteriores e completar a imagem-espantalho da polarização política formada por dois lados igualmente radicais, incivilizados e igualmente refratários ao diálogo político, ante a qual será oferecida a pretensiosa pregação civilizatória no parágrafo final – onde Fonseca ainda encontra espaço para incluir uma tosca comparação entre a alegada falta de celebração do Oscar conquistado por Ainda Estou Aqui pela direita e uma suposta “recusa a torcer pela Seleção de Neymar” pela esquerda.
O recurso de criar uma pantomima da polarização política por meio do abuso de falácias, distorções e falsas simetrias para, ao fim, colocar-se como portador do bom senso e da civilidade que faltariam aos supostos polos radicais e incivilizados parece batido e esgarçado, mas aparentemente ainda funciona. No caso de Fonseca, além de se autonomear árbitro da polarização fajuta que ele mesmo cria e reforça, o colunista também consegue provocar e atrair a atenção e comentários de centenas de leitores da Folha, de variadas inclinações políticas.
Ainda que essa estratégia discursiva possa fazer sentido no contexto do que se convencionou chamar de “economia da atenção” no padrão de comunicação das redes sociais, causa estranhamento quando é utilizada em espaço privilegiado de um representante da imprensa tradicional, como a Folha de São Paulo. O espanto é ainda maior quando o articulista que a utiliza chega ao limite de igualar discursivamente e nivelar em oposição simétrica as posições de políticos de extrema-direita com a fala de um cineasta que acaba de receber o Oscar por uma obra que põe na ordem do dia – não a política partidária rebaixada pela polarização radical, como o colunista insinua – mas a agenda ainda e cada vez mais imprescindível da democracia e dos direitos à dignidade humana, à justiça, à verdade e ao seu necessário registro histórico.
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Joabe Souza é advogado, graduado em Direito pela Universidade de São Paulo.