Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O mais complicado quebra-cabeças do jornalismo atual

(Foto: Congerdesign/ Pixabay)

Lidar com o triângulo formado pelas fake news, plataformas digitais e informação constitui o mais difícil de todos os desafios enfrentados pelo jornalismo contemporâneo.  A extrema complexidade vem do fato de que os três temas estão interligados num ambiente informativo ainda pouco explorado, onde as soluções convencionais tendem a não funcionar.

Na verdade, estamos diante de uma soma de complexidades. As fake news, ou notícias falsas, são parte do fenômeno da desinformação, ou seja, o desenvolvimento de narrativas baseadas na omissão, distorção ou falsificação de dados e eventos. As notícias falsas passaram a ser um problema mundial ao serem transformadas em arma político-ideológica e se tornarem uma enorme dor de cabeça para as empresas jornalísticas ameaçadas de perder a credibilidade do seu público. 

Acontece que tanto a imprensa como legisladores e magistrados, em sua esmagadora maioria, tratam a questão das fake news com uma visão punitiva, um mal a ser exterminado, o que é impossível dada a própria natureza da notícia. Qualquer dado, fato ou evento reportado por uma pessoa embute na narrativa as percepções do autor, logo alguma dose de subjetividade e, portanto, um grau variável de diversidade informativa. As fake news são uma óbvia aberração dentro de um sistema noticioso, mas dada a sua natureza complexa, a forma mais eficaz de combatê-las é através da conscientização pública de suas consequências maléficas e até criminais. 

O fenômeno das plataformas digitais, como Facebook, Youtube, Telegram, Twitter e Instagram torna ainda mais complicado o enfrentamento das notícias falsas na medida em que elas passam a ser disseminadas em tempo real num contexto planetário. Mais do que isto, a intensidade e diversidade da sua propagação cria uma saturação informativa que bloqueia ou anula a capacidade de quem as recebe de formular rapidamente um juízo crítico e evitar atitudes equivocadas. 

Cresce no mundo inteiro a tendência a limitar o crescimento avassalador das redes sociais e novamente se repete a abordagem jurídica e política predominante no combate às fake news. As redes sociais são um fenômeno inseparável da digitalização da sociedade contemporânea. Elas permitiram a ampliação exponencial do número de indivíduos incluídos no fluxo informativo e seu crescimento é irreversível. Como todo fenômeno novo, as redes têm aspectos positivos que favorecem a integração e interação social e um lado negativo, fruto principalmente da obsessão das plataformas digitais pelo lucro. 

A guerra entre jornais e plataformas

Foi justamente a elevada lucratividade de empresas como Facebook, Google e Twitter que levou a imprensa tradicional a deflagrar uma guerra política contra as plataformas digitais. Os grandes conglomerados jornalísticos sabem que não conseguirão manter na era digital a mesma lucratividade obscena usufruída na última metade do século passado. A internet e a digitalização inviabilizaram o modelo de negócios da imprensa ao gerar uma migração de audiências e anunciantes em direção ao ecossistema informativo digital. Só algumas empresas sobreviverão ao tsunami digital na imprensa.

Em compensação, as redes sociais criaram condições para a proliferação de projetos jornalísticos independentes. Iniciativas locais, hiperlocais ou focadas em temas específicos se tornaram política e financeiramente viáveis pelo baixo custo da infraestrutura tecnológica, pela interação com o público e pela possibilidade de compartilhamento de informações. São vantagens nada desprezíveis mesmo levando em conta que os projetos autônomos recebem uma fatia mínima da bilionária receita das plataformas. 

Os grandes impérios da comunicação mundial tentam regulamentar a internet para prolongar a sobrevida de negócios que já foram extraordinariamente prósperos, mas que hoje lutam para não morrer. Usam influência política e o que restou de poder econômico para forçar os governos a enquadrar as redes sociais em códigos que as obriguem a compartilhar lucros. O modelo é a lei australiana que impõe ao Facebook e Google o pagamento aos jornais do país sempre que estes tiverem artigos reproduzidos nas redes sociais. Outros países como Canadá e França vão no mesmo caminho.

Aqui no Brasil, um projeto de lei sobre fake news acabou gerando um debate que envolve também o papel das plataformas e da imprensa, mostrando como os três temas estão interligados.   O projeto em discussão na Câmara de Deputados, depois de aprovado no Senado Federal, é criticado tanto por parlamentares governistas pelo temor de que ele possa interferir na divulgação de mensagens favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro, como pelas plataformas Facebook, Google e Twitter contrárias à remuneração de conteúdos reproduzidos de jornais ou emissoras de TV.

O problema é que todas as partes envolvidas na discussão, aqui e noutros países, tomam como referência parâmetros políticos, jurídicos e econômicos que não funcionam mais numa realidade digital. Fica muito difícil discutir normas baseadas no princípio do “certo ou errado” quando a avalanche informativa de internet mostra a existência de muitas variáveis entre estes dois extremos. A identificação de uma notícia falsa é fácil e rápida em casos quase óbvios ou grosseiros, mas o recurso à desinformação, cada vez mais usado pelos grandes estrategistas na comunicação online, é muito mais difícil de flagrar. 

É a desinformação veiculada através das plataformas digitais que está na base de grandes fraudes políticas como o processo da Lava Jato, que abriu caminho para a eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018; a falsa alegação de fraude nas eleições americanas de 2020 que motivou a invasão do Capitólio em Washington por extremistas de direita; e a suposta existência de armas químicas de destruição em massa no Iraque, justificando a invasão do país em 2003.

A guerra da cognição

A abordagem simplista de questões complexas gera falsas expectativas de solução de problemas surgidos nesta transição da era analógica para a digital. Não se trata apenas de substituir artefatos mecânicos por sistemas baseados em microprocessadores eletrônicos. Houve uma mudança qualitativa na forma pela qual as pessoas, independente de sua nacionalidade, raça ou crenças religiosas estão tendo que administrar todas as mudanças geradas pelas novas tecnologias digitais.  Isto nos obriga a refletir muito antes da tomar decisões cujas consequências podem ser letais. 

A guerra na Ucrânia não está sendo decidida através de combates, mas sim pela chamada “guerra da cognição”, cujo principal instrumento é a informação veiculada através de redes sociais, onde é muito difícil identificar a desinformação, notícias falsas e fatos reais. A incerteza sobre o que é confiável ou não no noticiário dificulta ou inibe o posicionamento da maioria das pessoas, o que as leva a se transformarem em participantes involuntários na estratégia militar de um dos lados envolvidos no conflito. 

A complexidade da discussão obviamente gera uma grande incerteza e insegurança, o que nos deixa tensos, porque ainda é forte a herança cultural da nossa longa convivência com sistemas jurídicos e políticos baseados em decisões dicotômicas, ou seja, limitadas apenas a duas escolhas. Hoje, quando temos diante de nós dezenas de possibilidades, não resta outro caminho senão assumir uma atitude crítica e uma posterior reflexão especialmente sobre aquilo que não conhecemos. O jornalismo tem um papel insubstituível é absolutamente crucial neste campo.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.