Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Um balanço inicial

Uma vez superada a infausta fase de aprovação da aludida lei, as preocupações agora devem se concentrar em sua plena aplicação. É chegado o difícil momento da afirmação de todo o conteúdo transformador da lei, contra o qual militam, aberta ou ocultamente, a improbidade e a ineficiência administrativas.

Desde 1988, com a promulgação da vigente Constituição Federal, o amplo acesso à informação pública é a regra, e o sigilo, a exceção. Essa lógica republicana é extraída do texto constitucional com absoluta facilidade. A Lei de Acesso à Informação Pública (Lei n. 12.527/2011) não introduziu um valor novo na ordem constitucional brasileira, mas dotou de imprescindíveis garantias o direito fundamental de acesso à informação pública.

Aí está o verdadeiro caráter revolucionário da nova lei: passou-se de uma proclamação constitucional, em termos fluidos, para mecanismos concretos de transparência ativa– divulgação espontânea de informações públicas, independentemente de solicitação – e transparência passiva– divulgação de informações públicas em atendimento a uma solicitação. Além do que se estabeleceram procedimentos e parâmetros para eventuais restrições de acesso e se definiram as responsabilidades dos agentes públicos, civis ou militares, por possíveis violações ao direito de acesso à informação pública.

Uma vez superada a infausta fase de aprovação da aludida lei, o que, por si só, representou um inestimável avanço em termos democráticos, as preocupações agora devem se concentrar em sua plena aplicação. É chegado o difícil momento da afirmação de todo o conteúdo transformador da lei, contra o qual militam, aberta ou ocultamente, a improbidade e a ineficiência administrativas.

Primeiros levantamentos da CGU

No âmbito federal, as perspectivas são positivas. De acordo com levantamento da Controladoria-Geral da União (CGU), nos três primeiros meses de vigência da lei os órgãos e entidades do Poder Executivo Federal receberam 25.065 solicitações de informação, das quais, até o dia 16 de julho de 2012, 22.552 (89,97%) já tinham sido respondidas. Além disso, segundo o Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão (e-SIC), criado pela CGU para acompanhar os pedidos de maneira centralizada, as respostas vêm sendo oferecidas no prazo médio de dez dias (o prazo legal é de vinte dias, prorrogáveis por mais dez).

Tais dados permitem reconhecer não só o nível satisfatório de atendimento do Executivo Federal, mas, sobretudo, a rápida assimilação da lei pela sociedade civil. Em dizer coloquial, ao que tudo indica a lei “pegou”.

Dificuldades de aplicação

Como se sabe, a Lei de Acesso à Informação Pública é endereçada indistintamente à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios. Lamentavelmente, contudo, ao contrário da União, os municípios estão demonstrando, de modo geral, um absoluto descaso com a transparência e, mais especificamente, com os deveres estabelecidos pela lei. Assim, por exemplo, em recente pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), de 133 cidades com mais de 200 mil habitantes, apenas 16 responderam a um singelo pedido de informação. Trata-se de um retrato da crônica ineficiência que caracteriza a maioria das administrações públicas municipais e, ao mesmo tempo, da cultura do sigilo que, infelizmente, ainda viceja no Brasil.

Tampouco é digna de aplausos a situação dos estados. Com raras exceções, os executivos, legislativos, tribunais de contas e ministérios públicos estaduais tardam no cumprimento da Lei de Acesso à Informação Pública.

Desvios interpretativos

Também merece atenção a cobertura midiática que recebe a legislação. Embora de insuspeita relevância, a excessiva exploração jornalística da divulgação das remunerações dos agentes públicos encobre outros aspectos legais de igual ou superior importância, aos quais, sorrateiramente, começa-se a emprestar interpretações distantes – para dizer o mínimo – dos propósitos que animaram a edição da referida lei.

Exemplo eloquente encontra-se no fundamentalíssimo dispositivo que estende a aplicação da lei às entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres. Não obstante os notórios e frequentes casos de desvios de recursos públicos operados nesse setor, já se descortina, sem qualquer alarde, uma tendência de interpretações orientadas a subtrair tais entidades dos deveres de acesso à informação pública. Ilustra essa tendência o Instituto Curitiba de Informática (ICI), associação privada sem fins lucrativos qualificada como organização social (OS) que, apesar das vultosas quantias anuais recebidas da Prefeitura de Curitiba, nega solenemente os pedidos de informação formulados pelo professor de Direito Administrativo e blogueiro Tarso Cabral Violin (blogdotarso.com).

Acesso à informação pública

Nos quadrantes de um Estado democrático de direito, em que o poder reside no povo (art. 1º, parágrafo único da Constituição Federal), os assuntos estatais a todos interessam. Eis por que a publicidade não é uma questão de escolha do administrador público. Trata-se de um dever inescusável, cujo descumprimento sujeita o infrator às penalidades previstas em lei.

Sabe-se, porém, que as normas jurídicas não são aplicadas automaticamente e que o administrador público – os exemplos indicados acima e a história o provam – não se renderá, num ato de iluminação divina, aos imperativos da transparência. É imperioso o engajamento da sociedade em prol do direito fundamental ao acesso à informação pública. Só assim o Estado brasileiro se despedirá do odioso patrimonialismo que sempre o acompanhou. Um grande passo foi dado. Os próximos dependerão, essencialmente, da participação dos cidadãos.

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[Pedro Serrano é mestre e doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e professor da Direito Constitucional da mesma instituição; Rafael Valim é mestre e doutorando em Direito Admnistrativo pela PUC-SP e professor do curso de especialização em Direito Administrativo da mesma instituição]