Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Apagão de informações sobre Vladimir Herzog

Audálio Dantas era presidente do Sindicato dos Jornalistas em São Paulo quando, em outubro de 1975, Vladimir Herzog, diretor do departamento de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi torturado e morto em dependências do II Exército. Audálio está escrevendo um livro sobre o episódio, no qual teve atuação destacada. Recentemente, ele pediu as informações sobre Herzog guardadas no Arquivo Nacional, em Brasília, e teve o dissabor de ver sua solicitação embaraçada por descabidas exigências burocráticas. O assunto foi abordado pelo jornalista Ricardo Kotscho em seu blogue de forma contundente [ver ‘A terceira morte de Vlado‘], o que levou o ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo, ao qual o Arquivo está subordinado, a determinar que a documentação fosse liberada para Audálio. Audálio teve, então, uma surpresa, como conta nesta entrevista ao Observatório da Imprensa.


Entre 350 e 400 tópicos, e muito pouco sobre 1975


Audálio Dantas – Ao solicitar os dados do Vlado, os papéis referentes a ele, eu solicitei os meus. Vem um resumo de cada citação. No meu caso, chegaram 97 páginas, cada uma com três ou quatro resumos. Isso significa de 350 a 400 citações a respeito aqui do seu prezado amigo. Aí tem um monte de coisas assim: ‘Participou do evento de instalação da Comissão da Paz’, ‘Assinou…’, ‘Foi a Piracicaba numa manifestação de sindicatos’.


Quando chega no período do Sindicato dos Jornalistas, principalmente aquele que mais me interessa, que é desde a posse, em maio de 1975, até a morte do Vlado… até o Fiel [Manuel Fiel Filho, operário comunista morto em 17 de janeiro de 1976]. Já em julho eu fui convocado pelo comandante do II Exército [atual Comando Militar do Sudeste], por causa de uma nota que nós fizemos censurando um associado, o Fausto Rocha, que disse num discurso, no palácio [do governo estadual] – ele era locutor [oficial], mas se deu o direito de fazer um discurso − que as redações estavam infiltradas pelos comunistas, essa coisa. Era de encomenda, isso. Fizemos a nota, o general nos chamou para dizer que o jornalista tinha toda a razão, porque as redações estavam realmente infiltradas pelos comunistas… E aí começou todo o negócio. E eu queria ver o que tinha acontecido.


Pois olhe: nem isto, nem nada dos dias de prisões, antes do Vlado, nenhuma referência. O que ocorreu efetivamente é que eles apagaram isso. Ou o SNI [antigo Serviço Nacional de Informações, centro de espionagem política da ditadura] não mandou os documentos, ou o Arquivo Nacional os sonegou, o que é muito grave.


Veja você. Aquele documento de 1.004 assinaturas de contestação do IPM [Inquérito Policial Militar feito após a morte de Herzog e que concluiu que o jornalista havia se suicidado] não aparece. O general Dilermando Gomes Monteiro [que substituiu Ednardo D’Ávila Melo no comando do II Exército, após a morte de Fiel Filho] visitou o sindicato − isso já é no outro ano −, não consta.


Então, evidentemente, apagaram. É um novo apagão.


O que o senhor encontrou relativo ao ano de 1975?


A.D. – Só há seis resumos. Eles começam em abril, ainda antes da posse, fazendo um relatório sobre as eleições no sindicato. Depois não se fala nada sobre debates que nós fizemos a respeito da censura, um monte de coisas que seriam bem de eles reportarem. Em seguida vão para agosto, falam de um ciclo de palestras promovido pelo sindicato. Não há uma menção às prisões dos jornalistas, que levariam à morte do Herzog.


Encontro intersindical proibido não é citado


Quando houve as primeiras prisões o senhor tomou alguma iniciativa?


A.D. – Ah, sim. Deixe-me reconstituir as coisas mais importantes que aconteceram nesse período. A posse da diretoria do sindicato foi no dia 6 de maio. Promovemos um encontro com outros sindicatos para discutir a política salarial do governo. Foi proibido pelo Dops – as intersindicais eram proibidas. Não tem nenhuma referência a isso. No dia 18 de julho houve o episódio do Fausto Rocha, locutor oficial do Palácio dos Bandeirantes. Dizer que as redações estavam infiltradas por comunistas fazia parte do discurso do general Ednardo. O sindicato fez uma nota discordando daquilo, dizendo que não era verdade, era uma generalização perigosa. Recebemos a primeira intimação para dar explicações no II Exército ao próprio comandante. Um fato desses devia estar registrado.


Um tenente da PM é morto, jornalistas são presos


A.D. – Em julho prenderam o tenente da PM José Ferreira de Almeida, morto [8/7/1975] nas mesmas circunstâncias do Vlado. Em agosto começaram as prisões de jornalistas. Em setembro começou a campanha contra o Vlado na TV Cultura. O Luiz Weis era editor chefe de jornalismo da Cultura e diretor do sindicato. Por exigência do SNI ele foi demitido da TV Cultura e da revista Visão. Também não há referência a isso.


O nosso jornal, Unidade, começou a circular em agosto. Na segunda edição, em setembro, nós já denunciávamos a prisão do Weis. Prenderam o Sérgio Gomes da Silva no Rio, por determinação do DOI-Codi de São Paulo. Depois a Marinilda Marchi [hoje, Carvalho], em Brasília. Essas duas prisões nós denunciamos, fizemos nota, e cada prisão de que o sindicato tinha conhecimento motivava uma nota de protesto. Acontece a morte do Vlado e todo aquele movimento que se conhece, até o culto ecumênico [ver depoimentos sobre Vlado e ‘Trinta anos para não esquecer‘]. Não há uma referência sobre isso. Qual a razão? O SNI não mandou para o Arquivo Nacional? Ou mandou para o Arquivo Nacional e o Arquivo Nacional não está relacionando [esses documentos]? É essa a questão.


O senhor vai questionar o Arquivo Nacional para saber se de fato não tem mais nada?


A.D. – Isso. Porque, como eu disse, há registros da minha participação ‘na mesa de debate da faculdade não-sei-o-quê’, um monte de coisas. Eu apareço às vezes como membro do PCB, às vezes como membro do PC do B, é uma confusão fantástica. O SNI era o principal órgão de informação do governo militar e é estranhíssimo que esse período não tenha sido registrado. Nesse período a diretoria do sindicato é convocada ao comando do II Exército umas cinco ou seis vezes. Também não aparece nada disso.


Quais serão seus próximos passos?


A.D. – Vou anotar os tópicos que me interessam, para pedir o conteúdo, e vou fazer esta pergunta: qual é a razão de não haver esses registros, se há documentos que não chegaram ao Arquivo Nacional. Ao mesmo tempo, com base na liberação feita pelo ministro da Justiça, eu pedi os documentos do Vlado. Vamos ver o que vem. Esse período tem que estar lá. Assim como deveria estar no meu dossiê.