Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Assédio à escola pública

O que esperar quando os Três Poderes da República discutem o ensino religioso? Projeto de Lei do Deputado Pastor Marcos Feliciano, de novembro de 2014, que já recebeu reação pública contrária por parte da SBPC, voltou à tona após a realização, pelo Supremo Tribunal Federal, de histórica Audiência Pública. Convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, e relativa à Ação Direta de Inconstitucionalidade 4439, iniciativa meritória da Procuradoria Geral da República, tratou do ensino religioso, que, segundo a Constituição Federal, é de matrícula facultativa para o aluno, embora deva ser oferecido pelas escolas públicas. O portal do STF na internet traz os 31 vídeos de representantes de entidades. Ali, honrada, representei a Confederação Israelita do Brasil – Conib.

O primeiro ponto da ADI 4439 refere-se à inconstitucionalidade do Art. 33 da Lei n. 9394/96, regulamentações existentes, e o que se tem feito a título de cumprir esse dispositivo. No segundo ponto, a Procuradoria Geral da República (PGR) faz uma proposta, se considerado inconstitucional. O terceiro, refere-se ao Art. 11 do Acordo da Santa Sé com o Brasil, ponto que não integrou a convocação da audiência.

Deverá ser acolhido pelo STF o ponto que entende como inconstitucional o que há atualmente, já que na convocação da audiência, o ministro Barroso propôs três alternativas para o que fazer, incluindo a da PGR, sendo que a Conib, entre outras entidades, pediu que fossem alargadas as possibilidades de debate.

Determinar que é inconstitucional o que aí está será ganho histórico para o Estado, comunidades religiosas, sociedade e em especial as escolas, a sala de aula e as crianças que frequentam o ensino fundamental e vinham sendo constrangidas por medidas que tornavam obrigatório o que está estabelecido como facultativo, propondo conteúdos que violam a liberdade de consciência e de crença. Perpassa a discussão o irrenunciável dever do Estado de defender crianças e adolescentes que frequentam o ensino fundamental de todo constrangimento, discriminação e opressão, como determinado pelo Art. 227 da Constituição Federal.

O segundo ponto da ADI 4439 é independente do primeiro, pois volta-se para desenvolver proposta curricular para a escola. Sendo facultativo, não pode e não deve haver matrícula automática nesse conteúdo, como alguns sistemas de ensino praticam. Não se pode constranger alunos, alunas, mães e pais a ter que se dirigir à escola para pedir dispensa do que é facultativo, não eletivo ou optativo.

Quanto à proposta presente na ADI de um ensino religioso “não-confessional”, trata-se de risco que não se pode correr. Se o STF decidir acolher a proposta de definir conteúdo escolar, poderá induzir a confundir o que é facultativo com o que é obrigatório, renovando e reforçando a inconstitucionalidade da prática e sob o rigoroso manto da mais alta corte da República.

Debate sobre evolucionismo

Exemplo desse tipo de invasão de conteúdos privados sobre a esfera pública, o debate sobre evolucionismo e criacionismo na escola tem causado muita controvérsia, como é o caso do Projeto de Lei 8099/2014, do deputado Feliciano. A ementa do PL anuncia: “Ficam inseridos na grade curricular das redes pública e privada de ensino conteúdos sobre criacionismo”. Fica evidente que a proposta impõe como obrigatório conteúdo que seria facultativo para os alunos – e estende a decisão a todas escolas, públicas e privadas, sendo em tudo, evidentemente, inconstitucional.

No momento já corre em paralelo duplicidade de propostas para definição de bases curriculares nacionais, uma do Ministério da Educação, outra da Secretaria de Assuntos Estratégicos, cujo ministro Mangabeira Unger declarou que havia divergências entre os dois encaminhamentos, considerando bom que assim o seja.

A escola pública, acossada pelas agruras do cotidiano, corre o risco agora de se ver assediada pelos Três Poderes da República, a determinar seus conteúdos: o Executivo com duas propostas conflitantes, o Legislativo com esse PL, e o Judiciário, convidado a se manifestar.

Ora, o resultado das exposições na audiência indicou que será preciso que o STF seja muito cauteloso na decisão que venha a tomar no segundo ponto da análise da ADI 3349. Com duas exceções, todos afirmaram que melhor seria não haver na Constituição esse dispositivo.

Se o STF fizer uma escolha, seja qual for, voltada para medidas escolares do cotidiano, poderá consolidar de modo irreversível, com sua decisão (por exemplo, com a proposta de realização de concursos públicos para professores do conteúdo facultativo e controverso), um dispositivo tão questionado como é o Art. 210 § 1º.

O ensino religioso é matéria da esfera privada, das famílias e comunidades religiosas. Cauteloso, o ministro Barroso destacou que as escolas confessionais, assim denominadas pela Lei 9394/96 as escolas ligadas a comunidades religiosas, como privadas em geral, não serão afetadas de forma alguma pelas decisões do STF relativas a ADI 3349.

Mas quanto à escola pública, é de todos e todas, para formar o cidadão e a cidadã que deve conviver com a pluralidade e a diversidade que está na sociedade como um todo. Por isso, em relação às escolas públicas, pode ser o momento de uma grande mobilização em favor de uma Proposta de Emenda Constitucional que retire da Constituição Federal o § 1º do Art. 210, dirigindo-se ao Congresso Nacional para encarar o desafio histórico, mesmo se necessário por proposta de iniciativa popular.

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Rosely Fischman é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Metodista de São Paulo.