Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Coronelismo eletrônico na radiodifusão educativa

Somente agora chegou ao conhecimento público, por intermédio de matéria da jornalista Elvira Lobato, na edição da Folha de S.Paulo de quinta-feira (7/6) [‘Justiça veta concessão de TV educativa sem licitação‘, acesso restrito a assinantes do UOL e/ou da Folha], uma decisão de juiz da 2ª Vara Federal de Goiás, tomada em abril de 2006, que pode pôr fim a uma ‘brecha’ legal que é uma das portas abertas para a continuidade do que tem sido chamado de ‘coronelismo eletrônico’. Na decisão, provocada por ação do Ministério Público Federal iniciada em 2003, e ampliada em 2005, o juiz considerou inconstitucional o decreto-lei 236, de 1967, que serve de base à não-exigência de licitação pública para as concessões de televisão educativa.

Na verdade, o decreto-lei 236/67 exclui as TVs educativas de exigência estabelecida pelo Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962. Diz o parágrafo 2º do Artigo 14 do decreto-lei:

‘A outorga de canais para a televisão educativa não dependerá da publicação do edital previsto do artigo 34 do Código Brasileiro de Telecomunicações.’

O Artigo 34 do CBT, por sua vez, diz que:

‘As novas concessões ou autorizações para o serviço de radiodifusão serão precedidas de edital, publicado com 60 (sessenta) dias de antecedência (…).’

Essa norma, por incrível que pareça, conseguiu ‘sobreviver’ à Constituição de 1988, cujo artigo 175 exige licitação para a concessão de serviços públicos:

‘Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.’

Nova alteração

Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o decreto 1.720, de 28/11/1995, estendeu à radiodifusão as exigências de licitação regulamentadas pela lei 8.666/1993, alterando o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (decreto 52.795 de 31/10/1963). A partir de então, as outorgas de radiodifusão comercial só poderiam ser feitas por meio de licitação.

Passou despercebida, todavia, a redação do Parágrafo 2º do inciso XV do Artigo 13 do decreto 1720/1995, que dizia:

‘Não dependerá de edital a outorga para execução de serviço de radiodifusão por pessoas jurídicas de direito público interno e por entidades da administração indireta instituídas pelos Governos Estaduais e Municipais, nem a outorga para a execução do serviço com fins exclusivamente educativos‘ [grifo meu].

As emissoras de rádio e televisão educativas ficavam, portanto, dispensadas das licitações e poderiam continuar autorizadas através de critérios estabelecidos diretamente pelo Ministério das Comunicações, embora continuassem tendo que ser submetidas ao Congresso Nacional conforme manda a Constituição de 1988.

Estava discretamente ‘aberta a porta’ para a continuidade do uso das concessões de rádio e televisão como moeda de barganha política – só que, agora, exclusivamente para as rádios e televisões educativas.

Cerca de um ano depois, o decreto 2.108 de 24/12/1996 promove nova alteração que consagrada a ‘brecha’. Está lá no Parágrafo 1º do inciso XV do Artigo 13:

‘É dispensável a licitação para a outorga para a execução de serviço de radiodifusão com fins exclusivamente educativos.’

Golpe importante

Em agosto de 2002, uma seqüência de reportagens realizadas pela mesma repórter na Folha mostrava detalhadamente como o governo de Fernando Henrique Cardoso havia dado continuidade à pratica de distribuição de TVs educativas a políticos aliados. Na matéria inicial, sob o título ‘FHC distribuiu rádios e TVs educativas para políticos’, publicada em 25/8/2002, está escrito:

‘Em sete anos e meio de governo, além das 539 emissoras comerciais vendidas por licitação, FHC autorizou 357 concessões educativas sem licitação. (…) A distribuição foi concentrada nos três anos em que o deputado federal Pimenta da Veiga (PSDB-MG), coordenador da campanha de José Serra, esteve à frente do Ministério das Comunicações. Ele ocupou o cargo de janeiro de 99 a abril de 2002, quando, segundo seus próprios cálculos, autorizou perto de cem TVs educativas. Pelo menos 23 foram para políticos. A maioria dos casos detectados pela Folha é em Minas Gerais, base eleitoral de Pimenta da Veiga, mas há em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Roraima e Mato Grosso do Sul.’

Da mesma forma, quatro anos depois, em junho de 2006, novamente Elvira Lobato publicou matéria na mesma Folha de S.Paulo, de 19/6/2006, sob o título ‘Governo Lula distribui TVs e rádios educativas a políticos’, na qual se afirmava:

‘O governo Lula reproduziu uma prática dos que o antecederam e distribuiu pelo menos sete concessões de TV e 27 rádios educativas a fundações ligadas a políticos. (…) Entre políticos contemplados estão os senadores Magno Malta (PL-ES) e Leonel Pavan (PSDB-SC). A lista inclui ainda os deputados federais João Caldas (PL-AL), Wladimir Costa (PMDB-PA) e Silas Câmara (PTB-AM), além de deputados estaduais, ex-deputados, prefeitos e ex-prefeitos. Em três anos e meio de governo, Lula aprovou 110 emissoras educativas, sendo 29 televisões e 81 rádios. Levando em conta somente as concessões a políticos, significa que ao menos uma em cada três rádios foi parar, diretamente ou indiretamente, nas mãos deles.’

A decisão do juiz goiano, até agora desconhecida inclusive pelas dezenas de concessionárias de radiodifusão educativa diretamente atingidas, poderá colocar um fim nessa ‘brecha’ – que, aliás, não é a única.

A prática sofrerá, sem dúvida, um importante golpe. Existem, no entanto, outras ‘brechas’ e, através delas, o ‘coronelismo eletrônico’ continua se perpetuando travestido em diferentes disfarces.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)