Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Detalhes escondidos da cerimônia de posse

A imprensa brasileira chamou a atenção para o registro quase nulo, por parte da mídia norte-americana, da numerosa presença da família queniana (tios, primos etc.) de Barack Obama nas festividades da posse, em contraste com a enorme atenção dedicada à família nuclear norte-americana (esposa e filhas). Isto pode ser apenas um detalhe de um magno acontecimento, mas é certamente índice cultural da permanência de uma forma velha e arraigada de percepção social, incompatível com as circunstâncias da eleição e posse do novo primeiro mandatário dos Estados Unidos. É mesmo uma forma anacrônica frente ao novo éon de que o fenômeno Obama dá sinais.

Éon (ou aion), termo de circulação acadêmica, é uma das palavras que expressam ‘tempo’ em grego antigo. Mas é uma temporalidade especial, relativa ao acontecimento. Os pensadores neoplatônicos valiam-se desse conceito para indicar o tempo cíclico do retorno na História, que assinala o acontecimento e a mudança. Cristo, neste sentido, seria um éon, ou seja, um evento de transformação que já se anunciara antes na História e se repetiria mais tarde sob a forma dos avatares.

Mesmo dentro do espírito laico, essa idéia pode ser evocada para se assinalar o advento de um tempo já prenunciado e esperado quando corresponde às esperanças de parcelas ponderáveis de determinados grupos humanos. Por exemplo, depois de um longo período de guerra e destruição, a expectativa de paz e restauração pode instaurar o éon, a marcação temporal de um acontecimento harmonizador.

‘Organizar para a mudança’

A eleição e a posse Obama ajustam-se a esse quadro de referência. Entenda-se bem: não se trata de mitificar ingenuamente a figura do novo presidente norte-americano. Afinal, é o primeiro mandatário da maior potência (mesmo se financeiramente combalida e em crise de liderança internacional) num cenário mundial unipolar, que em instantes cruciais agirá como tal, em favor dos interesses do que mais de um autor tem chamado de Império. Em cima da mesa do presidente dos EUA está fixada a inscrição here stops the buck (literalmente, ‘aqui o coelho pára de correr’), em referência à centralidade do poder. Não se devem ter grandes ilusões, porém, quanto às eventuais conseqüências do peso que o Salão Oval e todo o seu background industrial-militar exercem sobre a cabeça de quem ali toma decisões finais.

É impossível, porém, passar por cima das circunstâncias pessoais e sociais que levaram ao poder o primeiro presidente negro na História dos EUA. A noção de éon justifica-se pelo largo espectro realizado e anunciado de mudanças: a vitória eleitoral do pós-racialismo, o retorno da normalidade democrática às ações de Estado, a expectativa quanto a um estilo menos brutal de governo.

A idéia de mudança, aliás, atravessa desde sempre a vida pessoal de Obama, a se acreditar na autobiografia A Origem dos meus Sonhos (Editora Gente, 2008), best-seller do New York Times que merece ser lido. Em 1983, estudante de Direito, mas decidido a realizar um trabalho social, ele resolveu tornar-se líder comunitário. Narra:

‘Quando colegas da faculdade perguntavam-me o que um líder comunitário fazia, não conseguia responder-lhes ao certo. Mas tentava falar sobre a necessidade de mudanças. Mudança na Casa Branca, onde o presidente Reagan e seus protegidos conduziam seus atos sujos. Mudança no Congresso, complacente e corrupto. Mudança no espírito do país, maníaco e egocêntrico. A mudança não virá do topo, eu dizia. A mudança virá das raízes, das bases mobilizadas. Isso é o que farei, vou organizar o povo negro. Nas bases. Para a mudança.’

‘O chão não é o mesmo’

Uma coisa é o homem; outra, a História, certo. O poder, quando não corrompe, distorce as melhores intenções individuais e destila as suas ironias. Assim, apesar das ácidas críticas a Reagan, Obama já dele retoma o projeto de evitar o declínio do Império que, no entanto, contrabalança com a idéia (à maneira de Roosevelt) de restauração da fé no país e nos valores morais da democracia. As suas primeiras medidas executivas (proibição da tortura, anúncio do fechamento da prisão de Guantánamo, sinalização para a retirada de tropas do Iraque) ainda não impedem concretamente o massacre militar de civis no mundo, mas são ‘estilisticamente’ alentadoras, no fundo estratégias de transformação da percepção social interna e externa.

Resta aguardar o que acontecerá com o desenrolar da crise financeira nos EUA e no mundo e com a evolução do indivíduo Barack Obama no Salão Oval. Resta ver o que sobreviverá de seu empenho existencial, além da política pura e simples, pois foi sobre esse élan que se acenderam os holofotes da mídia e se debruçaram as expectativas dos eleitores.

Resta esperar também que mudem os padrões cognitivos da mídia americana de modo a que não mais a embarace a família africana de seu primeiro mandatário. É aconselhável guardar nas mentes um pequeno trecho do discurso de posse de Obama: ‘O que os cínicos não entendem é que o chão que eles pisam não é mais o mesmo.’

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro