Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Perguntas (ainda) sem resposta

A regra é sempre a mesma. Primeiro a indignação surge do populacho após tomar conhecimento pela imprensa de algum ato odioso, violento. Depois temos a repercussão, momento em que são entrevistados especialistas no assunto objeto da violência, gente da Academia, autoridades do governo. Nesse meio tempo alguns jornais investigam (ou fazem de conta que investigam), mobilizam seus colunistas fixos e o assunto veste a roupagem de editorial.

Mas, convenhamos, o recente caso, acontecido no Rio de Janeiro, que tem como protagonistas principais a TV Globo, a sua principal atração comercial, o Big Brother Brasil, e os participantes Daniel e Monique, não seguiu a regra. Para localizar rapidamente o leitor: na madrugada de segunda-feira [16/1], após longa noite de bebedeira, telespectadores assíduos do Big Brother Brasil, através de assinatura da TV paga, utilizando o sistemapay-per-view, passaram a divulgar no Twitter que, pelas imagens exibidas, não restava dúvida de que Monique havia sido estuprada por Daniel.

Pelo inusitado do assunto – um possível estupro assistido por milhões de telespectadores e ocorrido nas dependências da principal emissora de televisão do Brasil – escrevi no Observatório da Imprensa o artigo “Cabeças vazias, corpos sarados e comportamentos patéticos”.

O que me faz retornar ao tema são outras vertentes que restaram inexploradas ou bem pouco exploradas, tanto pela imprensa quanto pela sociedade. E que clamam, como Moisés no deserto, por resposta. Respostas. E destas vertentes, disponho-me a elencar algumas, sem me ater à sua ordem de importância.

1. Por que a TV Globo resumiu assunto tão grave e tão inédito na televisão brasileira a uma simples expulsão de participante de seu reality show devido “a comportamento grave e que fere o regulamento do programa”?

2. Desde quando o regulamento de um reality show tem primazia ou é mais importante que os direitos e as liberdades civis esculpidas em nossa Carta Magna, a Constituição brasileira, em um caso com tamanhas evidências da existência de crime?

3. Por que a TV Globo tardou a agir – levou quase 24 horas para abordar o assunto publicamente – tendo todos os meios a seu dispor para concluir que algo de muito grave havia acontecido em dependência sob sua total responsabilidade?

4. Por que a TV Globo não foi a primeira a acionar a polícia, encorajando e liberando os dois participantes – Daniel e Monique – para atender com presteza aos trâmites investigatórios?

5. Por que a TV Globo não chamou os dois jovens, separadamente, para assistir aos 17 minutos vazados no pay-per-view em que o imbróglio teria chegado às vias de fato?

6. No caso de Monique, a presumida vítima, que é como a grande imprensa trata do assunto, será que ela se lembraria mesmo de tudo o que aconteceu?

7. Ela estaria consciente ou inconsciente diante dos avanços de Daniel?

8. A mera visualização das imagens por parte de Monique, ao menos nas cenas em que era protagonista, juntamente com seu brother Daniel, não poderia funcionar como uma espécie de “indutor de memória”?

9. Não seria lícito supor que, na possível confirmação de que a moça fora violentada enquanto dormia, também não teria sido ela “violentada” pela produção do programa, no momento em que a produção se negou a informá-la exatamente o que estava ocorrendo?

10. E, por que não informá-la da mobilização imensa nas redes sociais e das diversas repercussões extramuros da casa do BBB?

11. Ela e os 15 outros participantes do reality show estariam conscientes de que poderiam ser vítimas de crime de estupro no período em que ficassem trancafiados na casa?

12. E, em caso de crime de estupro, estariam conscientes no ato de assinatura do contrato, de que não poderiam ver as imagens captadas pela ilha de edição do BBB e muito menos atender a solicitação policial para passar por exame de corpo de delito?

13. O interrogatório de Monique no chamado “confessionário” do BBB não deveria ter sido conduzido por um psicólogo ou alguém com expertise na área?

14. Afinal, não ficou evidente que para a própria Monique “ela não sabia exatamente o que havia ocorrido na noite anterior” e que, intrigada pelos questionamentos no confessionário, chegou a perguntar a Daniel o que, de fato, acontecera naquela noite?

15. Não é sintomático que Daniel tenha negado a relação sexual, afirmando que foram apenas beijos e outras carícias, mostrando uma atitude esquiva para o assunto?

16. Por que a TV Globo não estimulou – não encorajou e não facilitou ao máximo –Monique ao exercício de seu direito de fazer o exame de corpo de delito, exame este recomendado, logo de início, pela polícia ao adentrar as dependências do Projac?

17. Por que a TV Globo considerou “grave infração ao regulamento do programa” o que poderia melhor ser caracterizado como crime de estupro?

18. Por que a TV Globo se sentiu no direito de priorizar a duvidosa credibilidade de sua atração em detrimento de impedir por todos os meios a seu alcance a ocorrência de crime hediondo como o de estupro em suas dependências?

19. A emissora de tevê mais bem-sucedida, do ponto de vista técnico, comercial e de audiência, não disporia de assessoria jurídica a tempo e a hora que explicasse à sua direção o que encontra-se estabelecido na Lei nº 12.015, de 07/08/2009, que reformulou o Título VI, da Parte Especial do Código Penal, que trata dos crimes sexuais?

20. Por que os advogados do potentado das comunicações do Brasil não informou a cúpula da empresa daquilo que até um acadêmico de Direito, ainda nos primeiros anos de estudo, passa a ter conhecimento: a nova lei (12.015/2009) criou o crime de estupro de vulnerável, com pena de reclusão de 8 a 15 anos, e este se caracteriza pela prática de qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos (217-A, “caput”), ou com pessoa (de qualquer idade) que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento, ou não pode oferecer resistência (§ 1º)?

21. Monique, sob efeito da quantidade de álcool ingerido ao longo da festa do sábado, disporia do necessário discernimento sobre o ocorrido ou teria condições de oferecer qualquer resistência em caso de ser forçada a manter relações sexuais?

22. Não é fato, ao menos para quem teve acesso às imagens do BBB naquela madrugada [16/1], que a moça, na situação em que se encontrava, era uma mulher desacordada e vulnerável, aparentemente sem consciência e sem meios de reagir, e que teve o seu corpo violado e invadido por alguém?

23. Boninho, diretor-geral da atração, após constatar a celeuma em que seu programa se meteu, virando na linguagem das ruas “caso de polícia”, resumiu o assunto como sendo… racismo. Não foi oportunismo explícito trazer a lume a questão que tanto enferma a sociedade brasileira em um caso que tudo leva a crer seria estupro, transformando-o em questão racial? Não seria o mesmo que encontrar um peixe pedalando uma bicicleta?

24. Dentre as muitas cláusulas – e devem ser dezenas – constantes do contrato que os participantes assinam quando são aprovados e aceitam participar da atração Big Brother Brasil, existirá ao menos uma única que trate especificamente do crime de estupro, com todas as suas variáveis, especificando inclusive as consequências tanto para o infrator quanto para a vítima?

25. Ou, deveríamos supor que até mesmo a ocorrência de um assassinato intramuros da casa do BBB, na ótica dos responsáveis pela atração, poderia no máximo ser considerada “infração grave do regulamento”?

26. Quais as responsabilidades a serem apuradas?

27. A da TV Globo, emissora responsável pelo programa?

28. Dos patrocinadores que viabilizam a existência do programa?

29. Do diretor-geral do programa, Boninho, que toma todas as decisões relacionadas com o sucesso ou o fracasso da atração?

30. De Daniel, que, também sob efeito de álcool, teria possivelmente se aproveitado da moça?

31. Da moça que, por sua extrema falta de movimento nas cenas divulgadas no pay- per-view, teria “feito por onde” o assunto chegar às vias de fato, ao confessionário e à polícia?

32. Da equipe de técnicos que “monitora” por vídeo e áudio tudo o que acontece, segundo a segundo, no BBB durante seus três meses de existência e que nada fez para impedir a possível consumação da relação presumivelmente não consentida?

33. Da empresa Endemol, que previa no formato da alteração que nesta 12ª edição a casa do BBB contasse com não mais que 10 camas para seus 16 participantes dormir?

34. Existem linhas demarcatórias entre o que pode ser considerado “diversão pública e explícita na TV” e o que pode ser caracterizado como a ocorrência de um crime hediondo como o do estupro?

35. Qual teria sido a atitude da TV Globo caso as cenas daquela madrugada não tivessem sido levadas ao ar pelo sistema pay-per-view transmitido por canais de TV a cabo?

36. Tudo seria visto como absolutamente normal dentro dos elásticos padrões de moral e decência da emissora e em particular do BBB?

37. Qual o papel da audiência nesse circo de horrores?

38. Seria o caso de a TV Globo pedir votação através de chamadas telefônicas pagas, ao estilo do “Você acha que houve estupro?”, “Se sim, disque para 0300-1234” e “Se não, ligue para 0300-5678” para aferir o real entendimento do público?

39. E, se tudo parece se resumir a uma complexa questão de audiência, a decisão do público votante seria a decisão final, irrecorrível e suficiente para dar o caso como encerrado?

40. Não é fato que a emissora líder de audiência, na madrugada do domingo [15/1], reconheceu as existência de possível crime e que no plantão de notícias do pay-per-view os responsáveis pelo programa escreveram coisas como “agora está rolando um clima”, “a loira não se mexe”, e não se absteve de tratar o assunto como mais um “indutor de audiência”, capturando a atenção dos costumeiros voyeurs ou meros curiosos insones e fornecendo robusto incremento em seus números no Ibope?

41. Não causa espécie o fato de que, um dia após o ocorrido na noite da bebedeira semanal do BBB, no espaço de 24 horas, o índice da audiência da atração global escalou de raquíticos 20 pontos para exuberantes 36?

42. A omissão da Globo diante do caso gerou que tipo de reação por parte das autoridades governamentais?

43. As reações foram adequadas à gravidade do caso?

44. E qual a reação dessa omissão por parte das outras emissoras de televisão do país e por parte dos grandes jornais no eixo Rio/São Paulo?

45. Será pertinente aguardar que o assunto ocupe a capa de revistas semanais como Veja, CartaCapital, Época e IstoÉ?

46. Ou o ocorrido na casa do BBB 12 nem mesmo fará parte de coluna de notas de nossa mais importante revista de fofocas?

47. Quando a população tomará conhecimento das diligências policiais na sede do Projac, como o exato teor dos depoimentos colhidos na casa do BBB?

48. Quando a população terá conhecimento do resultado dos exames e das perícias feitas nas roupas íntimas de Daniel e Monique e também do edredom, todas essas peças confiscadas pela autoridade policial em sua batida no Projac?

49. Não será o momento de a sociedade brasileira começar a debater o aspecto legal de que canal de televisão no Brasil é uma concessão de Estado e que, portanto, estes canais têm a obrigação de oferecer alguma contrapartida à sociedade?

50. Por que seria lídimo supor que uma emissora de tevê aberta reservar espaço para Guimarães Rosa, Chiquinha Gonzaga, Clarice Lispector, Adélia Prado, Vinícius de Morais ou Villa-Lobos em sua grade de programação seria nocivo ao populacho?

51. Deixo em aberto para os leitores formularem a questão.

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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundoseu twitter]