Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Liberdade de imprensa e liberdade de empresa

Em decisão tomada na segunda-feira (22/8), o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, arquivou o pedido (Petição 3486-4) do advogado Celso Marques Araújo para que fosse instaurado procedimento penal contra os jornalistas Marcelo Carneiro e Diogo Mainardi, da revista Veja, por matérias publicadas na sua edição nº 1916 (de 3/8/2005) [ver remissões abaixo].

Desde então a sentença tem sido saudada pela grande imprensa como ‘aula de liberdade de expressão’, ‘admirável’, ‘impecável’, ‘exemplar’ e ‘parâmetro para o Supremo no julgamento de novas ações criminais contra jornalistas’. Os editoriais trazem títulos como ‘Decisão histórica’ (Veja), ‘Voto pró-liberdade’ (O Globo) e ‘Vitória da imprensa’ (O Estado de S.Paulo).

Independente do seu mérito, no entanto, a decisão recoloca para os observadores da mídia – sobretudo para os não advogados, leigos como eu próprio – uma questão fundamental. Trata-se de esclarecer qual a relação que existe entre a liberdade de expressão, referida ao indivíduo, e a liberdade de imprensa, referida às instituições e empresas de mídia que disputam o mercado das chamadas indústrias de comunicação.

Em outras palavras: a liberdade que você, leitor, tem de expressar seu ponto de vista publicamente guarda alguma equivalência com a liberdade (de imprensa) que tem um grupo privado multimídia como, por exemplo, a Editora Abril?

Atores poderosos

Ao longo de sua decisão, o ministro afirma que ‘a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação de pensamento e de comunicação, reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, dentre outras prerrogativas relevantes que lhe são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de buscar a informação, (c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar’.

A partir dessa definição, o ministro usa indistintamente em seu argumento as expressões ‘liberdade de imprensa’; ‘crítica jornalística’; ‘crítica que os meios de comunicação social dirigem às pessoas públicas’; ‘liberdade de informação’; ‘liberdade de expressão e de comunicação de idéias e de pensamento’; ‘direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura, sem restrições ou sem interferência governamental’; ‘conduta do jornal e opiniões jornalísticas’.

Dada a máxima vênia, pondero que as transformações históricas que envolvem a ‘imprensa’ nos últimos quatro séculos tornaram extremamente questionável o argumento de que a liberdade de imprensa seja uma ‘projeção’ da liberdade de expressão.

Ambas as liberdades têm suas histórias vinculadas à chamada liberdade negativa (negative freedom), isto é, à liberdade de indivíduos ou grupos de indivíduos de expressar suas opiniões sem interferência externa. Em sua origem, ambas se referiam à ausência de restrições exercidas pelo poder do Estado absolutista, autoritário, não-democrático.

Muita coisa mudou, porém, desde os tempos em que os indivíduos se reuniam face-a-face nas suas aldeias e pequenas comunidades para discutir e decidir sobre seus problemas comuns e em que liberdade de ‘imprensa’ (press) significava o direito individual de imprimir.

O desenvolvimento tecnológico e a conformação dos sistemas econômicos fizeram com que as sociedades se tornassem muito mais complexas e grande parte da comunicação humana fosse, aos poucos, sendo intermediada por tecnologias e instituições ou empresas privadas que estão longe de ser meros condutores através dos quais a informação circula livremente. Hoje, as empresas de mídia se constituem, elas próprias, em importantes e poderosos atores, tanto econômicos quanto políticos, mas sobretudo atores determinantes na construção da opinião pública em todo o mundo.

‘Direito natural’

Não é segredo para ninguém que a indústria das comunicações, apesar de crises financeiras localizadas, transformou-se num dos principais negócios das últimas décadas, e exemplo de concentração da propriedade no mundo globalizado. Reduzida a alguns megagrupos privados, tendem cada vez mais a controlar o que vemos, ouvimos e lemos. Basta olhar ao redor: uns poucos grupos familiares-empresariais, alguns associados a conglomerados multinacionais, praticamente controlam todo o fluxo das comunicações no Brasil.

Apesar de estarmos no século 21, diante de uma realidade radicalmente diversa daquela em que viveram os que primeiro teorizaram sobre a liberdade de expressão e a liberdade de ‘imprensa’ (press), os grandes grupos de mídia brasileira continuam a evocar os clássicos liberais em defesa de suas posições e contra tudo o que consideram ameaçar os seus interesses privados.

Um exemplo: quando se discutia no país um pré-anteprojeto de lei que criaria a Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), a própria revista Veja (edição 1872, de 22/9/2004) publicou matéria sob o título ‘Pequeno dicionário das (re)criações políticas’, anunciando a intenção de ‘contribuir para a exatidão do uso do vernáculo, tão vilipendiado no debate político’.

Neste ‘pequeno dicionário’ de apenas seis verbetes – Gestapo, Fascista, Liberdade de Expressão, Democracia, Modernidade e Stalinismo –, a descrição do ‘o que é’ é contraposta a um ‘novo significado’ que estaria sendo introduzido no debate político brasileiro.

O significado original de ‘liberdade de expressão’ é recuperado em John Milton (1608-1674) e considerado ‘sempre um direito natural’ seguido de um comentário que ‘estende’, sem mais, a liberdade de expressão aos meios de comunicação. Escreve a revista:

‘O cerceamento da liberdade de expressão é fato comum, especialmente nos regimes totalitários do século XX, como o comunista e o nazista. Goebbels defendia o controle dos meios de comunicação’.

Na parte do verbete que descreve o ‘novo significado’ se lê:

‘No Brasil moderno, a ‘liberdade de expressão’ deixou de ser um direito natural e absoluto, passando a ser encarada como algo que – na avaliação de ministros do governo e de tribunais superiores [sic] – ‘é relativo’ ou exige ‘precondições para ser exercido’’.

Ora, nem mesmo na Inglaterra de John Milton a liberdade de expressão – e a liberdade de imprensa/imprimir (press) – era considerada um direito absoluto. Aos católicos, por exemplo, esse direito era negado.

Por outro lado, faz tempo que a justificativa para a liberdade de imprensa não é mais a idéia miltoniana de um direito natural (individualista) originado em Deus ou na Natureza. J. Stuart Mill, no século 19, já se valia da justificativa utilitarista. E depois do relatório final da Hutchins Commission (1947), nos Estados Unidos, a justificativa passou a ser o compromisso moral defendido por W. E. Hocking (1873-1966). Voltado para o bem comum, é ele que fundamenta a teoria da responsabilidade social da imprensa.

Reflexão crítica

Dentro da realidade histórica globalizada do nosso tempo, a censura foi em parte privatizada e a origem do cerceamento da liberdade de expressão não pode mais ser atribuída somente ao Estado. Muitas vezes ela tem sua origem no poder econômico privado ou é autocensura.

Em resumo: liberdade de expressão e liberdade de imprensa são liberdades distintas. Já eram distintas no século 17 de John Milton, que defendia o direito individual de impressão (press) sem a necessidade de uma licença prévia da igreja e do Estado. Com muito mais razão, o são hoje quando liberdade de imprensa não se refere mais à liberdade individual de imprimir, mas sim à liberdade de empresas cujos principais objetivos são conferir lucratividade aos seus controladores e viabilizar sua própria permanência no mercado.

Neste contexto, é com uma razoável dose de desânimo que tomamos conhecimento dos argumentos desenvolvidos na decisão do ministro Celso de Mello. Eles revelam um incrível descolamento entre as normas legais e o pensamento jurídico vis-à-vis a reflexão crítica contemporânea, não só na academia e nos observatórios de mídia, mas também entre profissionais experientes que pensam com seriedade o jornalismo. No Brasil e no exterior.

Infelizmente, para a mais alta instância de justiça do nosso país – assim como para a grande mídia privada – a liberdade de imprensa (ou das empresas de mídia) continua sendo uma ‘projeção’ da liberdade de expressão.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)