Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Monteiro Lobato e o racismo

Alguns dizem que censurar o livro de Monteiro Lobato (em discussão por aqui nos últimos dois anos) é uma forma de recalcar o racismo ao invés de enfrentá-lo. Seria essa uma forma de combater o racismo apenas no âmbito simbólico, uma forma de a sociedade lavar as mãos censurando um livro enquanto deveria investir na promoção de igualdade social concreta (via políticas públicas)? A senhora concorda?

Marisa Lajolo – Discutir as denúncias relativas a Caçadas de Pedrinho me parece uma boa chance de se discutir leitura no Brasil. Respeito quem acha que a obra é racista, mas também espero que respeitem opiniões contrárias. Em matéria de interpretação de arte, não acredito em verdades absolutas. Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Bentinho tinha ou não um caso com Escobar? Os deuses mitológicos presentes em Os Lusíadas ofendem o cristianismo? A questão é contemporaníssima: a arte pode ironizar valores religiosos? Tais questões não se resolvem com leis. Resolvem-se com diálogo e com qualidade de educação, para o que são necessários professores bem formados e bem remunerados.

O que deve ser feito com uma literatura com traços preconceituosos, no caso, racistas? Ela deve ser modificada como objeto-documento, preservada na íntegra, oferecida com ressalvas? Como lidar com casos como Huckleberry Finne Caçadas de Pedrinho?

M.L. – Deve ser preservada na íntegra. Se acreditamos – como acredito – que livros articulam-se intimamente ao momento social em que foram escritos, alterar textos – ainda que com as melhores intenções – é muito ruim. É como retocar uma fotografia para “corrigir” o passado. A Rússia stanilista fez isso, “apagando” Trotsky de inúmeras fotos. Conheço a edição de Huckleberry Finn em que a palavra “nigger” foi substituída pelas palavra “slave”. Me pergunto que a diferença de sentido a substituição da palavra acarreta… 

Ao contrário de Twain, que era um defensor da igualdade racial, um antirracista notório, Monteiro Lobato é reconhecidamente um autor com tintas racistas – para alguns, era um eugenista. Isso faria do livro uma situação distinta da de Twain? 

M.L. – Minha opinião é diferente. Não acho que a posição assumida pelo narrador lobatiano manifesta atitudes que possam ser consideradas “racistas”, isto é, não creio que a obra literária lobatiana expresse ou propague atitudes de agressão e de desamor a negros. 

Em todo o mundo, tais demandas tendem a ser aceitas e as obras, modificadas ou ao menos vendidas com uma ressalva. O Brasil está tentando se inserir nesse cenário globalizado, em respeito a legislações e acordos internacionais dos quais faz parte?

M.L. – Não acho que seja universal (“em todo mundo”) a tendência a “corrigir” obras literárias. Mas mesmo que fosse – judeus e prostitutas excluídos da obra de Shakespeare, escravos negros expulsos da Bíblia e das Mil e Uma Noites, homossexuais banidos da obra de Dante – eu seria contra. Também discordo de incluir “ressalvas” (como notas de rodapé, anotações & similares ) em livros. Elas manifestam uma vontade disfarçada de “gerenciar” a leitura, impondo certos significados (e proscrevendo outros) aos leitores. Mas as atuais – e a meu ver equivocadas – denúncias ao racismo de Lobato são uma boa chance para uma pesquisa sobre leitura: crianças e jovens que leem Caçadas de Pedrinho, ou outras obras infantis lobatianas, opinam que o livro incentiva atitudes racistas? Leitores afrodescendentes sentem-se ofendidos quando leem as histórias do Sítio? Que tipo de cidadão forma a frase final de Caçadas de Pedrinho, na qual Tia Nastácia, tomando o lugar de Dona Benta em um carrinho, proclama: “Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá…” (p.71). Será que a voz da própria Tia Nastácia, no livro, não é mais convincente do que rodapés e advertências?