Tuesday, 14 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O Serpico da xeretagem

Herói ou traidor da pátria? Mártir ou idiota? Serpico ou Heróstrato? Na mira (desta página e do Serviço Secreto americano), o americano Edward Snowden, 29 anos, ex-assistente técnico do Serviço Secreto e delator dos programas de vigilância interna da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês). Herói e mártir não são categorias excludentes. Traidor e idiota, tampouco. Frank Serpico era aquele policial que há 42 anos expôs publicamente a corrupção da polícia de Nova York. Heróstrato foi aquele grego que tacou fogo no templo de Ártemis, em Êfeso, para chamar atenção para sua, até então ignorada, pessoa.

Se Snowden estiver apenas em busca de fama, o tempo dirá, se já não o disse. Idiota por ter fugido para Hong Kong, que tem acordo de extradição com os Estados Unidos? Discutível. Ao contrário de seu mais recente parâmetro, o soldado Bradley Manning, provedor do papelório secreto vazado pelo WikiLeaks, preso há 13 meses por espionagem, Snowden preferiu lutar em campo neutro, longe dos denunciados. Esperta decisão.

“O governo dos Estados Unidos repetiu comigo o que fez com outros denunciantes, eliminando qualquer hipótese de julgamento justo, declarando-me culpado de traição, acusando-me de criminoso”, reiterou na entrevista com internautas que, de um ponto não revelado de Hong Kong, concedeu pelo site do diário londrino The Guardian, na segunda-feira. A fuga lhe deu, de quebra, mais tempo para agir e defender-se, com a ajuda inestimável do jornalista inglês radicado no Rio Glenn Greenwald, sua interface exclusiva com o mundo exterior.

Snowden foi mais longe, sobretudo geograficamente, do que William Binney (criptoanalista da NSA que se demitiu em outubro de 2001 para não compactuar com o arrocho dado no sistema de segurança após o atentado de 11 de setembro), Thomas Drake (executivo da NSA) e John Kiriakou, movidos pelos mesmos escrúpulos.

Vinculação indireta

Snowden não foi, portanto, o primeiro técnico ligado àquela agência a soprar o apito – a tornar-se o que lá chamam de whistleblower, maneira elegante encontrada por Ralph Nader para distinguir um delator do bem de um delator tout court. Pois não é de agora, nem por causa de Bin Laden, que a NSA faz o que faz. Falou-se muito, nas últimas semanas, no programa de vigilância clandestina Prism, adotado pela NSA desde 2007; mas bem antes da escalada terrorista, que teoricamente justificaria sua adoção, ela já se utilizava de outro prodígio de escuta e interceptação de mensagens chamado Echelon. Hendrick Hertzberg dá detalhes palpitantes no último número da New Yorker. Só em março deste ano a NSA coletou à sorrelfa 97 bilhões de dados nos Estados Unidos e em diversos países aliados, a maioria do Oriente Médio.

“Não quero viver num mundo em que tudo que faço ou digo é arquivado”, repetiu Snowden no chat promovido pelo Guardian, ao longo do qual também respondeu a perguntas técnicas sobre como o governo americano invade sites, computadores pessoais e linhas telefônicas e explicou por que nem sempre é possível defender-se dessa intrusão com os préstimos da criptografia. Negou que estivesse a fim de entregar informações ao governo chinês em troca de asilo; do contrário, ironizou, teria ido direto para Pequim, “onde estaria vivendo agora num palácio”. Contatos, só com o Guardian e o Washington Post. “Trabalho apenas com jornalistas”, enfatizou.

Diferentemente do WikiLeaks, fez uma escrupulosa triagem das informações repassadas à imprensa, fixando-se nas de “legítimo interesse público”, ou seja, no trabalho de varredura em contas telefônicas e e-mails de milhões de pessoas executado pelo governo, segundo ele, sem autorização prévia da Justiça. Não revelou quais algoritmos a NSA utiliza, por exemplo, não comprometeu agentes nem mencionou operações contra alvos militares. “Há documentos de todo tipo, alguns dos quais causariam enorme impacto, mas meu objetivo não é atingir pessoas, e sim buscar transparência.”

Nem por isso questiona o modus operandi de Bradley Manning e Julian Assange. Este, aliás, exaltou sua decisão. E o mesmo fez Daniel Ellsberg, o funcionário do Departamento de Defesa responsável pelo vazamento dos Documentos do Pentágono, no governo Nixon, que num primeiro momento também foi tachado de espião e traidor da pátria, mas há tempos é reconhecido por unanimidade como um paladino da liberdade de informação.

Ellsberg considera os programas de vigilância eletrônica da NSA “uma atividade perigosa e anticonstitucional” (pois fere a Primeira Emenda, pilar da liberdade de expressão, e, acima de tudo, a Quarta Emenda, que proíbe escutas, grampos e afins sem autorização judicial). “Em vez de contribuir para nossa segurança ela põe em risco as liberdades que tentamos proteger”, arrematou.

Snowden trabalhava para a NSA indiretamente. Seu empregador de fato era a Booz Allen Hamilton, empresa de serviços de segurança, uma espécie de Halliburton da xeretagem eletrônica contratada pela NSA e com interesses no Oriente Médio, notadamente nas ditaduras da região (Kuwait, Qatar, Omar, Emirados Árabes, Arábia Saudita, Bahrein) ameaçadas com algum tipo de sedição similar às da Primavera Árabe, conforme revelou o New York Times.

“Maior honraria”

A indústria da espionagem e contraespionagem digital fatura US$ 56 bilhões por ano e é a que mais cresce à sombra do complexo industrial-militar. Apenas 1% dos negócios da Booz Allen em território americano não é feito com o governo federal. Investe uma fortuna em campanhas políticas e na manutenção de um exército de lobistas; tem o Congresso nas mãos, um caso de “corrupção institucionalizada”, segundo David Sirota, que, na terça-feira, examinou suas vísceras na revista eletrônica Salon.

Para Sirota, não surpreende que a preocupação das forças corporativas com centrar a discussão na questão da segurança, minimizando ou desprezando a questão das liberdades civis e desqualificando quem nela insiste, tenha encontrado tão vistoso respaldo na Câmara, no Senado e em determinados setores da mídia dos EUA. Enquanto o presidente Obama mandava um recado de Berlim (“Não existe proteção absoluta contra o terrorismo nem proteção absoluta à privacidade”) e propunha uma barganha entre a segurança e a privacidade, na velha clave reciclada entre nós pelo brigadeiro Eduardo Gomes (“O preço da liberdade é a eterna vigilância”), o Congresso abrigava um fórum de debates que já no título dizia a que veio: “Como os Programas da NSA Protegem os Americanos e por que Denunciá-los Ajuda nossos Adversários”.

Na terça (18/6), em depoimento no Congresso, o chefe da NSA, general Keith B. Alexander, disse que a vigilância denunciada por Snowden ajudara a evitar meia centena de atentados terroristas, desde o 11 de Setembro, dos quais dez em território americano. Não os especificou para não entregar suas fontes nem os métodos de apuração da agência. Nenhum parlamentar perguntou ao general se ele havia mentido para o Congresso, pouco tempo atrás, ao negar 14 vezes que a NSA tenha capacidade técnica para interceptar e-mails e outras comunicações online no país e no exterior. Não faz nem dois meses que James Clapper, chefão da inteligência do governo Obama, desmentiu que a NSA tivesse coletado dados pessoais de centenas de milhões de americanos.

Foi por não suportar mais as “litanias mentirosas” de seus superiores que Snowden decidiu afinal confrontá-los. Não o fez antes da reeleição de Obama por acreditar que ele, cumprindo promessa de campanha, daria maior transparência às questões de segurança. “Eleito, Obama fechou as portas para a investigação de sistemáticas violações da lei no país, aprofundou e expandiu vários outros programas abusivos, recusou-se a dar um basta aos desrespeitos aos direitos humanos, como acontece em Guantánamo”, queixou-se o défroqué da Booz Allen Hamilton aos internautas do Guardian. Para em seguida sumir na clandestinidade, como um sucedâneo do fugitivo dr. Richard Kimble.

Longe dele, a discussão prosseguiu. Algumas das melhores cabeças da América o consideram um exemplo de coragem, um herói à altura de Daniel Ellsberg e do técnico nuclear israelense Mordechai Vanunu, que anos atrás entregou a existência de um programa armamentista em Israel. Na revista New Yorker, por exemplo, só Jeffrey Toobin destoou do resto da redação. Já na equipe de articulistas do New York Times, dois dissonantes notáveis: Thomas Friedman (que confessou ter menos medo da espionagem da NSA que de “uma eventual catástrofe na escala do 11/9”) e o ainda mais conservador David Brooks, que tentou desqualificar Snowden no divã freudiano como “um rapaz frágil” com sérias dificuldades de relacionamento e integração social.

Snowden evitou comentar as objeções que lhe foram feitas na mídia americana, mas não perdeu a chance de cutucar o ex-vice de Bush, Dick Cheney, um dos que o xingaram de traidor com mais rapidez e veemência. “Ser acusado de traidor por ele é a maior honraria que um americano pode ter”, replicou, lembrando ter sido Cheney quem inventou o esquema de grampeamento eletrônico sem autorização judicial e articulou as trampas que resultaram na guerra no Iraque, em que milhares de americanos e iraquianos perderam a vida.

Estado policial

Em meio ao chorrilho de insultos a Snowden e teorias conspiratórias a respeito de sua conduta (o radialista Webster Tarpley acusou-o de “agente triplo”, com a missão de forçar uma intervenção na Síria; o jornalista Job Rappoport acha que ele é um joguete numa clandestina guerra burocrática entre a NSA e a CIA; o blogueiro Scott Creighton o crê metido numa conspiração da qual Greenwald e a documentarista Laura Poitras também fariam parte), uma baita surpresa: a ferrabrás feminista Naomi Wolff, que pôs em dúvida a autenticidade de Snowden.

Em sua página no Facebook, Wolff lançou a suspeita que ele seja a parte visível de um complô do “Estado policial” em que, a seu ver, a América se transformou. “É do interesse do Estado policial que todos pensem que tudo o que escrevem ou dizem está sendo observado”, esclareceu, pondo mais caraminholas na cabeça dos paranoicos. 

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S. Paulo