Sunday, 12 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Um discurso que funciona sob a lógica do lucro

Os protestos que se iniciaram em março – mesmo que ainda sem grande repercussão – contra o aumento das passagens em diversas cidades brasileiras resultaram em um levante geral que englobou uma série dispersa de reivindicações. Entre as múltiplas pautas levadas para a rua estava sempre a crítica à mídia hegemônica. Essa reivindicação ganhou espaço próprio na manifestação organizada concomitantemente no Rio de Janeiro e em São Paulo contra as Organizações Globo, prevista para a última quarta-feira, dia 3 de julho.

A marcha na Avenida Paulista ficou somente na promessa – ou, para ser mais preciso, teve motivos diferentes: as injúrias da classe médica. Já na cidade carioca, o ato que lacrou simbolicamente a sede da TV Globo, no Jardim Botânico, passou despercebido, como era de se esperar. Dos sites de jornalismo tradicionais, somente o Jornal do Brasil – e seu associado, o portal Terra – dedicou espaço ao acontecimento, e ainda assim sem mencionar a faixa colocada na porta do edifício pelos manifestantes em uma analogia à ação da polícia federal em rádios comunitárias consideradas ilegais. O número de manifestantes divulgado pelo jornal, 100, também não coincide com as versões de participantes e jornalistas independentes, que em blogs e pelas redes sociais relataram a reunião de cerca de 1.000 pessoas. Não se falou, tampouco, do estopim do protesto: a irregularidade fiscal das Organizações Globo. Muito menos sobre os objetivos gerais dos manifestantes, que se colocavam contra o monopólio das empresas de comunicação e a favor da ampliação do acesso aos meios.

Crítica à lógica do mercado

Sejam 100 ou 1.000, é inquietante ver uma adesão baixa, ou inexistente no caso de São Paulo, a uma manifestação que considere questões essenciais à democratização da comunicação. Principalmente quando sempre existem gritos, reais e virtuais, que resumem o problema em máximas como “Fora Globo” e “A Globo mente!” Se os problemas da mídia se resumissem à mentira deliberada – embora ela também exista –, a solução seria tão fácil quanto a simplificação moral: bastaria substituir os mentirosos por profissionais mais honestos. Máximas como essa, quando descontextualizadas e não discutidas, acabam por se tornar inócuas para uma mudança da realidade social. Um pedido vazio, colocado ao lado da “paz mundial” e do “fim da corrupção”.

Para quem quer fazer a crítica (mais do que justa) à Globo, é necessário primeiro esclarecer que a questão não se resume a uma empresa, mas se estende a todo o mercado de comunicação. Não se pode criticar a falta de ética dos meios de comunicação, e em especial do jornalismo, sem levar em consideração o fato de que empresas têm um compromisso com a manutenção financeira de sua estrutura. Justamente por constituírem um mercado, o discurso hegemônico das principais empresas de comunicação não pode deixar de estar em sintonia com a manutenção de determinado status quo: um estado das coisas que funciona sob a lógica do lucro.

É a velha questão da hegemonia colocada por Gramsci: a permanência ou a mudança depende da capacidade de liderança de determinado grupo social. Enquanto o discurso for monopolizado por integrantes favorecidos do sistema econômico, essa liderança será exercida em favor dos interesses de mercado vigentes. A possibilidade de uma existência social mais digna não pode estar dissociada da democratização da comunicação. Mas a crítica à comunicação não pode estar dissociada da crítica à lógica do mercado. E a proposta de soluções e alternativas deve também levar em conta o imperativo das pressões econômicas.

Disputa hegemônica

Com a demonstração recente de como as ferramentas digitais podem contribuir para uma grande mobilização social, e para divulgar uma enorme quantidade de informações omitidas ou distorcidas pela mídia hegemônica, muito se fala sobre a substituição da atividade do jornalismo pela esfera de compartilhamento nas redes. Não é o que acontece de fato. Em recente artigo da Folha de S.Paulo, reproduzido neste Observatório (ver “Jornalismo domina rede social em protestos”), os jornalistas Marcelo Soares e Nelson Sá divulgam que 80% dos links das principais hashtags do Twitter – relacionadas às manifestações –, entre 6 e 22 de junho, tinham origem em sites da grande imprensa.

Embora as redes sociais sirvam como catalisador para a organização de eventos, e para a divulgação rápida de informações pontuais sobre assuntos determinados, o trabalho jornalístico continua a servir de base para as discussões online. Seja para adquirir informações, ou mesmo para criticar as informações disponibilizadas, os principais veículos de notícia continuam a servir de referência para a localização dos sujeitos na realidade social; selecionam os assuntos importantes e disponibilizam informações inacessíveis aos indivíduos isolados. É exatamente isso que garante seu caráter hegemônico, que não existiria caso a necessidade histórica por conhecimento acerca do cotidiano pudesse ser facilmente suprida por outros meios.

Além disso, a web também é um espaço de disputa hegemônica, sujeita a manipulações, distorções e à desinformação, de forma até mesmo ampliada em relação aos jornais, devido às suas características de fluidez e anonimato (ver “Redes sociais, boatos e jornalismo”, de Sylvia Debossan Moretzsohn, neste Observatório).

Alteração da realidade social

A explosão das manifestações a nível nacional também serviu para dar maior visibilidade a iniciativas de mídia alternativa. Cresceu o acesso a organizações como a Mídia Ninja e novos coletivos foram formados, como o BH nas Ruas e o Alternativa. A mídia alternativa, e aqui se deve considerar também a mídia comunitária, sempre forneceu um serviço de contra-hegemonia de extrema necessidade. Assuntos excluídos do grande noticiário ganham espaço, e assuntos veiculados sob um mesmo paradigma assumem uma maior complexidade a partir de diferentes recortes. Justamente por isso é significativa sua recente descoberta em massa. O interesse coletivo se estendeu à mídia alternativa somente quando um determinado assunto ganhou um tamanho muito grande para ser contido apenas pela imprensa tradicional, e quando os abusos do Estado foram sentidos na pele por quem sempre ignorou sua existência nos grupos sociais marginalizados. Fica difícil saber se o interesse por esses canais de comunicação pode se estender para além das manifestações.

Difícil saber também se o interesse coletivo por alimentar canais alternativos de comunicação com fotos, vídeos e depoimentos se manterá por muito tempo. Mas, mesmo que a melhor possibilidade se concretize e a mobilização social continue a favorecer a exposição daquilo que o jornalismo comercial ignora, a mídia alternativa ainda possui enormes desvantagens materiais. A principal é a necessidade de trabalho voluntário, assim como a falta de subsídios para a manutenção de equipamentos e de estrutura. Apesar de a mídia alternativa ser essencial para o funcionamento de uma comunicação um pouco mais democrática, a organização empresarial do jornalismo, de grande alcance potencial, possui ainda uma enorme função social a cumprir.

A disputa hegemônica não deve se colocar apenas fora da grande mídia, e ignorá-la como algo ultrapassado ou em fase de extinção. Ela deve se estender até às estruturas de precarização do trabalho jornalístico, com o desemprego estrutural, o acúmulo de tarefas e os prazos cada vez mais acelerados, que dificultam o devido cuidado ético com a notícia. Não se trata de condenar o jornalismo a um fim, mas, pelo contrário, reconhecer sua necessidade real e lutar por mudanças nas suas condições de produção, de modo que a própria estrutura hegemônica se torne mais democrática, e possa servir de arma para a própria contra-hegemonia. Trata-se também de reconhecer que a mudança nos meios de comunicação está associada a uma alteração da realidade social, e dos determinantes mercadológicos que se colocam à frente da produção responsável do conhecimento jornalístico.

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Marco Vito Oddo é jornalista, São Gonçalo, RJ