Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um Nobel ‘black bloc’

Fazer a cobertura da entrega dos prêmios Nobel de ciência é uma tarefa periódica e previsível. O comitê sueco oferece à imprensa todas as informações necessárias com os detalhes técnicos já explicados para o leigo, e na sequência os jornalistas fazem contato com os especialistas do país para fazer a avaliação do premiado e das suas descobertas. E sem adrenalina, fora a gerada perto da hora do fechamento.

Desta vez foi diferente. Um dos vencedores do prêmio Nobel de Medicina 2013, Randy Schekman, vai ser lembrado por muito tempo. No seu minuto de glória global, o americano iniciou um quebra-quebra. Ao estilo dos intelectuais, lógico.

O que o Schekman fez foi publicar no jornal britânico The Guardian um comentário que revoltou muita gente. Logo, os cientistas se colocaram a favor e contra. No texto assinado por Schekman (ver aqui, em inglês; e aqui, em espanhol), ele sustenta que as revistas científicas de elite, especificamente Nature, Science e Cell, distorcem o método científico e desfiguram suas prioridades e seu funcionamento diário. Com isso, o cientista ataca de frente o intocável: a imagem pública da ciência.

O texto de Schekman também tem algo de mea culpa: ele admite que publicou tudo o que pôde nessas três revistas, incluindo os artigos que acabaram rendendo a ele o prêmio Nobel. Mas agora anunciou sua solene decisão de nunca mais publicar nada nelas. O objetivo declarado do boicote é denunciar as distorções que essas grandes editoras científicas exercem sobre o progresso do conhecimento.

O mesmo jornal The Guardian publicou uma matéria de ciência, com as respostas das publicações criticadas. O texto complementar também atraiu um grande número de comentários dos leitores (ver aqui). Isso acontece em parte porque Schekman não está sozinho. Muitos cientistas relevantes têm opiniões similares, porém não têm como levar o tema para a opinião pública.

Qual é a briga

As revistas científicas objetivam divulgar as pesquisas para a comunidade de pares, de forma a permitir que outros com a formação técnica necessária possam avaliar e utilizar o conhecimento. As publicações, eletrônicas ou impressas, servem então para tornar visível o trabalho dos cientistas.

O compromisso editorial declarado dessas revistas é sempre fornecer acesso a investigações originais interessantes, inovadoras e importantes, que ampliem os conhecimentos de uma área do saber e estimulem o pensamento em todas as disciplinas científicas. Um comitê editorial de especialistas é o que assegura o nível das publicações, decidindo se uma determinada matéria é ou não aceita. As revistas de primeira linha recebem tal quantidade de artigos a cada semana que têm que recusar cerca de 90% desses trabalhos. O prestígio de uma revista depende também de outros fatores, um deles é que seus artigos são mencionados com alta frequência em outras publicações também reconhecidas.

Tomando em conta essas considerações, as revistas científicas mencionadas por Schekman são, para utilizar a linguagem cotidiana, as top de linha do mundo científico. Dali a importância do boicote.

Qual é a crítica?

Os propósitos de comunicação e registro estão desaparecendo porque os papers se tornaram símbolos para o progresso na profissão científica. As publicações são utilizadas para avaliar os pesquisadores, para serem contratados, manter o cargo universitário ou responder a pedidos de financiamento. É a medida de ouro da produtividade. Peter Higgs, de 84 anos, outro prêmio Nobel, o físico britânico que deu o seu nome ao Bóson de Higgs, acredita que nenhuma universidade contrataria ele agora. Depois de sua grande descoberta (em 1964) de como o material subatômico adquire massa, Higgs publicou menos de dez artigos. Hoje, o sistema acadêmico não o consideraria suficientemente produtivo (ver aqui).

Publicar ou morrer. A expansão do conhecimento não é mais o único objetivo perseguido pelos cientistas. O sistema, então, não funciona direito.

As criticas vão além. Algumas afirmam que nessas revistas de elite a seleção dos autores é provadamente sexista, classista, e sujeita a outros possíveis vieses. Há desvios bem documentados de que se publicam mais resultados positivos do que negativos, porque apenas os primeiros são de interesse para a indústria e a imprensa. Ninguém vai se surpreender com a afirmação de que na ciência oficial predomina a informação anglo-saxã, que depois, em virtude de press releases feitos com muito profissionalismo, cobrem a mídia do planeta. O arqueólogo Michael Smith explica a questão no seu blog. “O problema com essas revistas – fora o fato de que não vão aceitar os meus artigos – é que na seleção dos artigos permitem que fatores jornalísticos substituam razões científicas.”

É nesse contexto de polêmica, e com o prêmio Nobel já na mão, que Schekman ataca sem medo. “As maiores recompensas vão para os trabalhos mais atraentes, não para os melhores.” “As citações estão relacionadas com a qualidade, porém não sempre.” “Os diretores dessa revistas ‘de luxo’ sabem disso, e aceitam artigos que terão muita repercussão porque estudam assuntos atrativos ou fazem afirmações que põem em questão ideias estabelecidas. Isto cria bolhas de assuntos de moda.”

Schekman faz um paralelo entre a ciência e o sistema financeiro, algo assim como “eu avisei, ninguém pode dizer que não sabia”. E qual foi a reação da mídia? Pouca.

O site brasileiro do El País deu em português uma matéria feita na Espanha, excelente já desde a escolha do título: “E se a ciência não for isso que você pensa?“. O texto completo do Schekman, porém, só saiu em espanhol. A Exame divulgou a resposta da revista Nature em uma matéria não assinada (ver aqui): “Os britânicos se defendem das críticas assegurando que selecionam os estudos que publicam com base em sua relevância científica e não no seu impacto”. O assunto foi discutido em alguns blogs, e pouca coisa mais.

Uma nova era

Logicamente, era de esperar que as revistas citadas não concordassem com as críticas – e elas têm suas razões. Uma delas é conflito de interesses.

Schekman fundou sua própria revista eletrônica, eLife, uma das publicações científicas “abertas” que pretendem estimular uma nova era na avaliação, apresentação e divulgação do progresso científico. Outro cientista que apoia o protesto é Michael Eisen, um dos fundadores da Public Library of Science (PLoS), a primeira e principal coleção de revistas científicas publicadas abertamente, e com um compromisso de transparência.

Essas publicações abertas mudarão a historia da ciência? E possível. Nunca tantos artigos científicos foram publicados e nunca foi tão fácil ter acesso a eles – e de graça. Logicamente, em tempos wiki, a guerra entre o establishment e a modernidade foi declarada. Com munição de dados.

De um e outro lado se está colocando o foco no número de estudos fraudados, plagiados ou simplesmente muito ruins através da análise das “retratações” – nome dado às pesquisas “despublicadas” por problemas éticos ou erros. “Dos anos 1970 para cá, a produção científica cadastrada na PubMed praticamente quadruplicou, mas os artigos ‘retratados’ cresceram em ritmo ainda mais forte, chegando perto de ficar seis vezes mais comuns” (ver aqui).

É fato que algumas das publicações abertas, de baixa qualidade, usam o pretexto do acesso livre para ganhar dinheiro. Nesse tipo de publicação, o cientista paga os custos de impressão do artigo, diferentemente das revistas tradicionais, que cobram assinatura dos leitores. Trata-se de um submundo de revistas científicas “predatórias” de acesso livre, que não honrariam o paradigma do acesso aberto, de democratizar o conhecimento e produzir cidadãos informados; de oferecer “informação líquida” sem restrições de acesso, amplamente disponíveis e em formatos que possam ser compartilhados por meio de protocolos abertos pelo futuro da humanidade.

Nesta guerra, o biólogo e jornalista científico John Bohannon deu, em 2012, um passo à frente. Submeteu 304 versões pouco diferentes entre si de um artigo científico fictício, assinado por um autor inexistente, de uma instituição também fictícia, a um conjunto selecionado de periódicos que publicam em Acesso Aberto (AA), com cobrança de taxa de publicação (article processing charge). Em 157 deles, o trabalho, que contém erros primários, conceituais e de interpretação, foi aceito prontamente para publicação, revelando o interesse financeiro, antes de tudo (ver aqui).

Os resultados do “experimento” foi publicado… na revista Science. E, logicamente, foi criticado pelos defensores do sistema. O que eles dizem? Bohannon não aplica a mesma estratégia a um grupo de controle que, neste caso, seria formado por periódicos não AA (acesso aberto), e por isso não dá para saber como se comportariam periódicos não AA diante de um artigo fictício dessa natureza. Outro questionamento é que Bohannon selecionou somente periódicos que cobram pelo acesso aberto.

Não há ainda provas indiscutíveis de que um sistema de comunicar a ciência seja melhor do que outro. Tampouco que um deles seja mais desonesto do que o outro. O assunto, porém, faz lembrar perguntas que o jornalista nunca deve esquecer: “como se financia?; quem vai ganhar o quê?”

Há muito material para o debate jornalístico. Mais uma vez, o nosso planeta é importante demais para ser deixado apenas nas mãos dos cientistas.

Cientistas são humanos

É interessante que a óbvia humanidade dos cientistas seja colocada como assunto num excelente artigo publicado na própria revista Nature, com o objetivo declarado de educar políticos e jornalistas. “Os cientistas são humanos. Os cientistas têm interesse em promover o seu trabalho, com frequência por status e também para ter dinheiro para as próximas pesquisas – e, algumas vezes, diretamente para ganhos financeiros. Isso pode conduzir a um recorte seletivo dos resultados e, em algumas ocasiões, ao exagero. A revisão por pares não é infalível: os editores de journals (revistas científicas) podem favorecer descobertas positivas e que gerem mais notícias” (ver “Policy: Twenty tips for interpreting scientific claims“, “Vinte dicas para interpretar reivindicações científicas”, em tradução livre).

Depois de que a ciência adquiriu prestígio quase religioso, parece que é preciso lembrar que os seus trabalhadores também são humanos. Nem tão bandidos como nos filmes de ficção científica, nem tão mocinhos como gostaríamos de acreditar. As denúncias do cientista americano obrigam os jornalistas a pensar em novas questões. Algo, sem dúvida, muito bom.

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Roxana Tabakman é jornalista e bióloga, autora de A saúde na mídia. Medicina para jornalistas, jornalismo para médicos (Editora Summus, 2013)