Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Perspectivas e desafios da sociedade da informação

Celso Antonio Pacheco Fiorillo é advogado militante há mais de três décadas e primeiro livre-docente em Direito Ambiental do Brasil. Jurista internacionalmente reconhecido pela construção de um pensamento crítico e solidamente fundamentado, registrado em inúmeros livros e artigos, o também Professor-visitante e Pesquisador da Facoltà di Giurisprudenza della Seconda Università di Napoli e de outras prestigiadas instituições de ensino orgulha-se de ter trilhado caminho solitário, mas muito frutífero, alargando suas perspectivas para além da tutela da fauna e da flora.

Avesso a zonas de conforto e ao elogio fácil, Celso Fiorillo tem desbravado, nos últimos anos, uma nova seara intelectual na qual tem formado doutrina: o fenômeno da sociedade da informação. Nesta entrevista exclusiva ele fala sobre o tema e, com bom humor, justifica seu inerente senso crítico: “O DNA de meus avós, que viveram em Cápua, cidade italiana próxima a Nápoles que abrigou, no passado, uma famosa escola de gladiadores, talvez explique esse meu temperamento combativo e de questionamento de mitos e estreiteza intelectual.”

“A educação melhorou em todos os níveis”

Que sentido pode ser atribuído à expressão “sociedade da informação”?

Celso Antonio Pacheco Fiorillo – Hoje há vários doutrinadores que estudam esse fenômeno, atribuindo-lhe os mais variados conceitos. A expressão “sociedade da informação” não tem origem ou é um termo jurídico, mas sim metajurídico. Diz respeito à “pátria” da cultura digital que hoje permite a comunicação em tempo real para todas as pessoas. Portanto, seu pressuposto é sociológico, histórico, antropológico etc. A novidade não está no conceito em si, mas na facilidade que temos de ser informados e de informar graças aos instrumentos de alta tecnologia. Nesse sentido, os direitos difusos estão claramente associados à sociedade da informação. Na atualidade, se informar tem relação com viver melhor, isto faz parte do nosso processo civilizatório. No Brasil, a sociedade da informação, sob o aspecto dos instrumentos tecnológicos, se compõe massivamente da telefonia celular e da TV. Esta última ainda é dominante em influenciar nossa sociedade. Muitos de meus colegas de pesquisa dão ênfase para o estudo da internet, mas prefiro colocar o foco na TV e também no rádio, trazendo à discussão o uso do espectro eletromagnético no meio ambiente em proveito do direito de informar e ser informado.

Quais os reflexos desta sociedade da informação sobre a qualidade do ensino jurídico no Brasil?

C.A.P.F. – Os brasileiros têm acesso ao estudo superior, algo muito diferente de antigamente, em que graduações como o Direito eram restritas à elite. Isso era reflexo da perspectiva do Estado da época, de que nossa sociedade só poderia ser gerenciada pela elite, paradigma hoje completamente superado. O próprio fenômeno da sociedade da informação agora permite ao bacharelando de Direito, munido de laptop, celular ou tablet com acesso à internet, ter uma visão mais ampla das matérias discutidas em sala de aula. Por sua vez, o professor de Processo Civil, Direito Penal e de outras disciplinas jurídicas se depara com esse estudante que tem informação em tempo real. Ser docente na graduação exige o preparo de aulas de altíssima qualidade. O problema é que certos alunos que pertencem à elite são muito insolentes, acham que já sabem tudo e não valorizam o banco escolar que ocupam. Diferente é a postura de quem, vindo das camadas econômicas menos favorecidas, precisa da faculdade para melhorar de vida. Essas pessoas sabem tirar melhor proveito da sistematização do conhecimento que os instrumentos de tecnologia tem facilitado. O governo brasileiro tomou a decisão certa ao priorizar a educação das pessoas de baixa renda, quebrando em nossa cultura o velho paradigma da educação elitista do século 19. Há acertos e erros no caminho que tem sido trilhado, mas refuto uma visão pessimista dos rumos do ensino no Brasil. Independente de opção partidária ou pensamento político, é incontestável que a educação em todos os níveis melhorou em nosso país, pois hoje quem quer estudar alcança esse objetivo, e isso inclui cursar um mestrado ou doutorado.

“O ensino jurídico continuará anacrônico”

Com essas perspectivas, que desafios se colocam para o docente nos cursos jurídicos?

C.A.P.F. – Fato incontestável é que, no presente, é bem mais difícil exercer o magistério. O professor tem que ser um grande sistematizador do conhecimento jurídico, além de ter pleno domínio de cultura geral e ser sensível para identificar as necessidades dos estudantes em sala de aula. Só passar informação é algo completamente superado. Isto porque o Direito, além de ser um produto cultural, é uma ciência social aplicada. Nesse sentido, o docente tem que ler de tudo, prestar atenção em tudo e saber ouvir muito. Tudo exige fundamentação. Mais: independente da disciplina que ministra nas aulas, o docente tem que ter pleno domínio do Direito Constitucional e do Direito Ambiental, pois esses ramos alcançam a maior parte dos empreendimentos nas esferas pública e privada. Também precisa entender de economia capitalista, além de ter absoluta clareza sobre o que é o fenômeno da sociedade da informação.

Quanto a esse último aspecto, que abordagem é a mais adequada para os docentes?

C.A.P.F. – A perspectiva da sociedade da informação como uma nova cultura que está se estabelecendo no século 21, tão importante ou de impacto maior que a Revolução Industrial, no século 18. Se o docente não entende as relações entre a sociedade da informação e o Direito Positivo, não dá aos seus alunos a formação que precisam para enfrentar os desafios do mundo contemporâneo. Por esse motivo, defendo o que ainda causa resistência no meio jurídico: a necessidade de mestrados multidisciplinares profissionais.

Em que consiste esta proposta?

C.A.P.F. – O profissional do Direito não pode perder de vista que a vida em sociedade, e todos os seus desafios, não se resolvem na base de recortes rígidos e canetadas. Portanto, a relação do Direito com a vida não pode estar restrita ao aspecto jurídico. Há que se considerar sua totalidade, sempre levando em conta as múltiplas interfaces do Direito com a Biologia, a Antropologia, a História, a Psicologia, a Arte etc. Percebe-se facilmente, desse ponto de vista, não só a importância como a necessidade urgente de concentrarmos esforços para a implantação de programas de pós-graduação multidisciplinares e propositivos por todo o país. Esse é o melhor caminho para o preparo de bons docentes e de profissionais para o mercado de trabalho e a atuação no governo. Nesse ambiente acadêmico multidisciplinar também se adquire um entendimento profundo do que é a economia capitalista, sistema econômico em que o mundo atualmente opera. Reitero, os docentes de hoje precisam ter pleno domínio da Constituição Federal, do Direito Ambiental e desse produto cultural irreversível, a sociedade da informação. Sem a compreensão profunda desses vetores por quem atua no magistério, não importa se ministrando aulas de direito material ou processual, o ensino jurídico continuará anacrônico.

“As pessoas se obrigam a entrar nas redes sociais”

Este campo de conhecimento está em construção?

C.A.P.F. – Sim. A doutrina está ainda em formação e muito me agrada desbravar essa nova seara, de certa forma repetindo minha trajetória na área do Direito Ambiental, em que tive a oportunidade de formar muitos quadros de mestres e doutores, além de discutir em bases mais amplas a tutela ambiental, de forma a aumentar seu campo de relevância, abrangendo situações que ultrapassam a proteção da fauna e da flora. Nunca compactuei com visões confinadas no Direito Ambiental. Por isso, nos últimos anos tenho me concentrado no estudo e na discussão do meio ambiente digital, que vejo como indissociável da tutela da vida.

No ambiente digital, como solucionar o impasse jurídico que contrapõe o direito de expressão e a privacidade das pessoas?

C.A.P.F. – Primeiramente, não acredito na necessidade ou funcionalidade de mais um código ou estatuto só para regular o ambiente digital. Não podemos perder de vista que vivemos em uma democracia e o que mudou é que o meio digital facilitou muitíssimo a comunicação de massa. Nos blogs e perfis nas redes sociais as pessoas se sentem à vontade para falar bem ou mal de tudo e de todos, opiniões que podem ser acessadas livremente por milhares de usuários. Mas os exageros têm sido perfeitamente resolvidos graças a várias decisões do STJ que punem exemplarmente diferentes situações. Isto mostra que o mundo digital não precisa de uma regulamentação especifica, pois seu marco legal é a própria Constituição Federal, suficiente para abarcar todas as situações de abuso. Quanto aos casos que envolvem operações econômicas fraudulentas, as leis de consumo me parecem suficientes para resolvê-los. Nosso Judiciário avançou muito e sabe fazer as adequações necessárias. Ademais, quando um novo marco legal entra em vigor, quase sempre suscita impasses interpretativos, o que retarda a prestação jurisdicional que a pessoa lesada deseja obter o mais rápido possível.

Se há marcos legais e um Judiciário atuante, o que justifica o extravasamento dos limites do próprio direito e a violação ao direito alheio?

C.A.P.F. – Vamos fazer uma análise prática. Nem mesmo o direito à vida é absoluto em nossa Constituição Federal. A liberdade de expressão também encontra limites claros em nossa Carta Magna, como demonstram os arts. 220 a 225, este último se reportando ao art. 5º. Assim, o direito de expressão está limitado pela Constituição e ninguém está autorizado a liquidar com a integridade psíquica ou física da pessoa humana. Quem quer se arriscar nessa conduta, certamente será processado civil e criminalmente. O ambiente digital não tem salvo-conduto e o leigo que usa suas ferramentas tem condições de perceber isso. Em interessante artigo, o escritor e chargista Ziraldo afirmou estar vendo muitos “canalhas” na internet, e ele não precisou de uma bagagem jurídica para perceber e afirmar que esse novo ambiente dá vazão para as pessoas mostrarem o que realmente são. Acertadamente, Ziraldo sinalizou para seus leitores que a internet não é o problema, mas quem faz mau uso das redes sociais. Hoje as pessoas praticamente se obrigam a entrar nas redes sociais. Sentem que estarão “fora de moda” se não estiverem ali se mostrando. Isso gera consequências. No nosso escritório, temos um grande volume de processos envolvendo menores que ofenderam, em seus perfis, outros colegas. Seus pais, além de figurarem no polo passivo dessas ações, terão de pagar as indenizações determinadas pelo juiz. O problema não está na sociedade da informação e, sim, na forma como hoje os pais educam e orientam seus filhos. Mais do que nunca, não se pode alegar o desconhecimento da lei. E de todos os preceitos civilizatórios, a dignidade humana é o mais importante pressuposto de aplicação do Direito Positivo.

“Encaro o Código Florestal como mais uma ‘leizinha’”

Haveria necessidade de o ambiente digital ser contemplado com tipos penais próprios?

C.A.P.F. – Não concordo com essa tese. Deputados e senadores precisam superar as discussões ideológicas e enfrentar a pergunta-chave: qual é a função do Direito Penal em uma economia capitalista de âmbito global dominada pela sociedade da informação? A criminalização de certas condutas é o resultado fácil, mas não vejo como a saída mais inteligente. O que interessa às pessoas é manter seguro ou intocado o seu patrimônio material, certo? Então, a melhor forma de se evitar abusos é colocar em vigor leis que imponham sanções pesadas em dinheiro sobre aqueles que ultrapassam o limite do bom senso, dentro ou fora do ambiente digital. A criminalidade e a impunidade não se resolvem com um sistema penal regido por uma visão vingativa e violenta. Se como sociedade escolhemos esse caminho, e a sociedade brasileira tem sido muito assediada por esse tipo de apelo, o que mostramos é que não estamos realmente interessados na ressocialização dos infratores. O que queremos é humilhá-los ou fazer com que sintam o que sofremos ou algo ainda pior. Concordo que os grandes temas trazidos pelo ambiente digital, como a propagação do racismo e do terrorismo, exigem regra infraconstitucional específica. Mas insisto: o Direito precisa ser regido pela racionalidade. Dentro de um sistema normativo capitalista, aplicar uma punição racional significa diminuir o patrimônio material do ofensor.

O mesmo se aplica na esfera ambiental?

C.A.P.F. – No meio ambientalista, sou acusado de ser um antropocêntrico. Sou réu confesso, pois o destinatário de nossa Lei Maior é o ser humano e sua dignidade. A Lei dos Crimes Ambientais é de máxima importância, pois desde sua entrada em vigor os empresários passaram a cumprir não só as exigências legais, mas ir além dos parâmetros estabelecidos. Já ouvi de vários colegas a crítica de que o regramento não permite prender ninguém, mas ele não foi feito para encarcerar as pessoas! A regra áurea do Direito Ambiental não é reprimir, mas sim prevenir. Tem forte caráter educativo porque visa preservar e defender os bens ambientais, o que não significa mantê-los intocados. Nossa Constituição determina que os bens ambientais sejam usados em proveito de todo o povo, lógico que com o conhecimento hoje disponível para que suas funções se perpetuem para sempre. É inequivocamente um direito intergeracional que deve ser usufruído pelas presentes gerações e não só pelas que virão no futuro, como muitos defendem de forma ideológica e frontalmente oposta ao que garante o texto constitucional.

As discussões acirradas em torno do novo Código Florestal garantem essa dimensão constitucional do Direito Ambiental?

C.A.P.F. – Somos um país com mais de 50% da população sem serviço de esgoto, o que faz muita gente morrer de doenças advindas dessa situação precária. Nesse sentido, encaro o Código Florestal como mais uma “leizinha”, pois não é um código. Temos outras leis federais em vigor muito mais importantes, como é o caso da Lei da Reforma Agrária, da Lei da Mata Atlântica e do Estatuto das Cidades. Talvez o aspecto mais negativo do Código Florestal seja sua pretensão de tutelar o espaço territorial urbano, algo que é flagrantemente inconstitucional. O fato é que há mais de 500 anos discutimos, de forma viciosa, os latifúndios de nosso país. Na área ambiental, definir o espaço territorial é o “x” da questão, e não ficar em debates vazios sobre fauna e flora.

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Simone Silva Jardim é jornalista