Monday, 13 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

A imagem de nós mesmos

‘Uma fotógrafa de moda é uma fabricante de mentira cosmética que mascara as intratáveis desigualdades de nascimento, de classe e de aparência física?’ (Susan Sontag no livro Sobre fotografia)

Acredito que ela já saiba a resposta. A pergunta instiga nosso intelecto e nos faz refletir acerca da mentira pela qual costumamos viver. Você já percebeu que a Nova – lida por mulheres na faixa dos 18 aos 49 anos – é uma revista que tem sempre como modelo de capa mulheres jovens (por exemplo, Juliana Paes, de 24 anos está na capa deste mês)? As fotos são bem produzidas, trazendo ao imaginário a idéia de beleza perfeita e juventude sempiterna.

Quando a imagem é vista, caso agrade, queremos possuir o que vemos. Então, o cérebro a apreende. Deixa de existir fora para fazer parte dentro. Ou seja, do imaginário da pessoa. Por outro lado, recusamos a imagem que não seja boa aos nossos modelos. E como o nosso modelo é de juventude e de formas simétricas, nos entediamos com a nossa própria forma, porque ela não coaduna com as imagens vendidas nas revistas, nos filmes, na televisão.

Mulheres de 30/40 anos não são mulheres de 20 anos. São diferentes, com outros projetos de vida, com corpos modificados pela experiência. Contudo, a imagem da mídia é poderosa porque vivemos numa cultura ótica, e ninguém reflete sobre qual imagem será introjetada, elas simplesmente são apreendidas, levando muitas mulheres a se sentirem indignas e humilhadas porque envelheceram.

A imagem nunca condiz com o fato. Imagens são estopins aos sonhos, são esquivamentos ao vivido, tentativas de pleitear outras realidades.

O tempo flui e somos outros a cada instante.

Sou a favor do envelhecimento porque sou a favor da vida. Trabalhando há anos com pessoas acima de 60 anos, tive inicialmente o desafio de ver a beleza da deformidade do corpo no gesto delicado, no movimento simples. Quando digo ‘deformidade’ refiro-me principalmente ao desvio da forma dada pelo modelo social. Não me refiro ao ‘anormal’, mesmo porque não acredito na anormalidade. Somos e seremos sempre anormais e normais dependendo do contexto em que estivermos.

Após alguns anos, envelhecendo, fui privilegiado a não correr atrás de imagens que possam agradar aos outros. Felizmente, fiquei desiludido com o modelo estanque de beleza. O belo, para mim, passou a ser o que é pleno em sua singularidade.

Por isso, é interessante conhecer o trabalho de Diane Arbus, fotógrafa americana que mostrava, na década de 60 e início da década de 70, a beleza da vida pelo lado da deformidade, do ‘esquisito’, do travestido, e de pacientes internados em asilos.

Ela escreve:

‘Pessoas esquisitas foram uma coisa que eu fotografei muito. Foi uma das primeiras coisas que eu fotografei e senti um tipo de excitação impressionante. Eu costumava adorá-los. Ainda adoro algum deles. Não quero dizer que eles são meus melhores amigos, mas eles me fizeram sentir uma mistura de vergonha e admiração. Há uma certa lenda sobre o esquisito. Como uma pessoa num conto de fadas que pára você e exige que responda a um enigma. A maioria das pessoas passa a vida com receio de que um dia terá uma experiência traumática. As pessoas esquisitas já nascem com seu trauma. Elas já passaram pela prova em vida. Essas pessoas são aristocratas.’

Enfim, as fotos de Diane Arbus são reais e nos convidam a brindar a realidade pela sutileza do sentido. Se não quisermos apreendê-las porque não agradam, tudo bem. Porém, se assim fizermos, uma coisa é certa: nunca seremos enganados a ser aquilo que não somos.

******

Mestre em Gerontologia pela PUC-SP, especialista em Neurologia, professor-titular de Geriatria e Gerontologia da Universidade Fundação Oswaldo Aranha (RJ), autor dos livros Quem somos nós? O enigma do corpo e Envelhecer: histórias, encontros e transformações