Thursday, 03 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

A ocupação do Estado e a luta na mídia

Definiremos corpo como o organismo estruturado simbolicamente. Mas essa estrutura não é homogênea. Os sentidos do corpo se entrecruzam: uns são silenciados, desmemoriados; outros são enfatizados, valorados negativa ou positivamente. O que está em jogo no preconceito, e na sua mais grave conseqüência política, a discriminação, na maioria das vezes é o corpo (não o organismo, mas o biológico) atravessado por uma rede complexa, heterogênea e nuançada de valores. É o corpo significado negativamente.

As tentativas de homicídio por carbonização do outro, por exemplo, visam antes à eliminação não somente do organismo, mas do corpo do outro, como materialidade daquela rede complexa de valores e sentidos. Queimar corpos representa o desejo de fazer desaparecerem os sentidos que aqueles corpos materializam.

A percepção do corpo como materialidade de uma rede simbólica, de uma rede de sentidos, permite pensar o preconceito discursivamente, em toda sua heterogeneidade, em sua escalaridade e em sua complexidade.

Estratificação do fenotipismo

Diremos que são heterogêneos porque um discurso preconceituoso (o conjunto de dizeres e práticas que orientam a relação imaginária com o outro, sob predomínio de certo sentido valorado ideologicamente como negativo) é sempre atravessado por outros discursos também preconceituosos.

O exemplo é que o preconceito contra o negro não é exclusivamente fenotípico. Embora não possamos ignorar que há questões relativas ao fenótipo que marcam a descendência afro-brasileira e que geram estigma. Chamaremos de fenotipismo, adotando a sugestão do antropólogo José Jorge de Carvalho (UNB), o discurso preconceituoso sobre o corpo físico (sempre simbolizado, para além do biológico). Mas daremos outros nomes a outros preconceitos, destituindo de homogeneidade o que se chama geralmente de ‘racismo’.

Além de heterogêneo, o preconceito é escalar. Negros de cor da pele mais escura, nariz largo, lábios grossos e cabelos crespos têm maior dificuldade de ascensão social, do que aqueles cujos cabelos são menos crespos e cuja pele é mais parda. É uma questão de estratificação do fenotipismo: escalaridade simbólica estruturando a relação do corpo físico do outro com o imaginário que sustenta os discursos.

Sentido que ganha corporeidade

Os preconceitos também são complexos. Não adianta a sociedade discutir a questão como contígua em todo o tecido social: em meios musicais, por exemplo, negros são muito bem recebidos; na dramaturgia, só há pouco tempo se começa a abrir portas mais relevantes para o seu talento.

Da mesma forma, não podemos dizer que a questão se desenvolva linearmente no tempo: como exemplos, a mídia de entretenimento e a mídia publicitária deram passos importantes nos últimos 10 anos, embora não o suficiente; já a mídia jornalística – considerando os gigantes do setor – mantém-se ocupada basicamente por vozes conservadoras, com riscos inclusive de retrocesso nos últimos dois anos.

Os preconceitos também são solidários: ignorar que é a valoração e interpretação negativa da herança biológica dos indígenas que faz com que alguns brasileiros também sejam orientados a seguir pelo elevador de serviços não é uma boa estratégia para pensar a questão negra.

De novo, o problema é o sentido que ganha corporeidade e faz com que traços biológicos sejam tomados como importando psicológica, moral e culturalmente (honestidade, inteligência, capacidade, comportamento etc.). Também ali temos um caso de preconceito sobre o corpo físico.

Mulheres e homossexuais

Junto ao preconceito de fenótipo, a simbolização negativa deste, vemos que outras variantes agem fortemente na atenuação ou agravamento do problema. Vejamos o caso do preconceito sofrido pelo nordestino, cujo agravante é o desprezo, existente em muitos setores da sociedade, pela(s) cultura(s) do Nordeste, principalmente, ou tão-somente, a popular, e também pela condição sócio-econômica que mais acentuadamente aflige aquela região.

Nesse caso, o preconceito é uma atribuição de sentidos negativos ao corpo cultural, o jeito de andar, os modos, o acento e a entonação da voz, o jeito de cantar e se manifestar esteticamente, do que deriva a idéia de que ‘o que vem da cultura popular-nordestina é significado como pobre, como pouco evoluído’.

Tais sentidos também ferem o corpo já triado economicamente (o pobre que inspira medo e repulsa). Na conjugação desses dois, ainda se pode acrescentar uma outra variante: um evolucionismo tosco, que faz com que aqueles que experimentam a pobreza, uma conseqüência sócio-econômica, sejam vistos como vítimas de sua própria incapacidade supostamente orgânica, do cérebro-mente.

Ao lado de tudo isso, assomam-se os preconceitos de gênero, que atingem mulheres e homossexuais. Mulher negra e pobre é discriminada por ser negra (sempre respeitando a escalaridade, que leva em conta as variantes de miscigenação), por ser mulher e por ser pobre.

Razão cínica e paixão militante

Ou seja, temos um fenotipismo atravessado de preconceito de cultura e de viés sócio-econômico, de gênero e de concepções equivocadas de história. Nenhum deles deve ser reduzido ao outro, sob o risco de não se compreender de forma acurada o problema.

Daí que a palavra ‘racismo’ acaba colocando todos os males sob um só manto. Pode, até certo ponto, ser útil politicamente, mas geralmente funciona mal como categoria analítica. E, por funcionar mal, abre possibilidades para que adversários dotados de razão cínica invistam nessa fragilidade argumentativa.

Hegemônica na mídia jornalística, a razão cínica, isto é, a negação parcial ou pura e simples de tão vastos problemas, só contribui para acirrar os preconceitos. Não é só cínica, é cruel: meninos são mortos muitas vezes por serem pobres. Outras vezes por serem negros. Outras ainda por serem homossexuais. E às vezes por isso tudo junto. O jornalismo brasileiro (dos grandes veículos) colabora insistentemente para a dominância dessa razão cínica, abrindo pouco espaço para quem dela diverge.

A ‘atitude impensada’

Por outro lado, observa-se também um monopólio da voz militante no Estado (processo iniciado no governo Fernando Henrique). Embora tenha que ser reconhecido o seu valor histórico, seu caráter precursor de quase todas as lutas e propulsor de transformações, nenhum monopólio de interpretação é bem quisto quando se tratam de questões tão graves para a sociedade.

O tema do preconceito, dos muitos preconceitos, demanda um empenho, diria, apaixonado, com vistas à melhoria das relações sociais. Mas também nos obriga a ter uma certa sutileza para considerar tudo o que o fenômeno exige para sua compreensão, em suas nuances, escalas, complexidades e heterogeneidades.

Deve-se compreender que todo preconceito que se sustenta sobre um discurso dominante é também incluído como natural por inúmeras vítimas – mas não todas – do preconceito.

E mais: como o sujeito é atravessado por diversos discursos, alguns conscientemente, outros não, mesmo quem está ‘livre’ do preconceito – contra o outro ou contra si – pode ser pego de surpresa (num ato falho, num chiste, numa ‘atitude impensada’). Daí que a vigília sobre os nossos preconceitos é, antes de tudo, uma questão ética.

‘Inimigos da sociedade’

Por isso, uma consideração necessária é ver que preconceitos são patologias da sociedade como um todo, embora não homogeneamente distribuídos. Nesse caso, embora haja vítimas, não há vilões nem mocinhos, e nem se aplica o maniqueísmo do bem contra o mal, simplista demais e de fundo religioso (ironicamente, mesmo os marxistas, ateus, foram pegos nessa cilada).

Outro problema é a identificação de ‘inimigos’ a serem combatidos. É a metáfora da ‘luta’ e do combate que atravessa séculos, que gerou ações heróicas, mas que hoje serve pouco como categoria de ação numa sociedade em que as redes de sentidos são complexas e os poderes são difusos. Sinceramente, as atitudes devem ser urgentes, mas não estamos em guerra.

Para ser mais explícito: o discriminador (aquele que põe o preconceito em ato, e com isso causa algum dano legal ou moral a alguém) deve ser julgado e condenado, mas ele não representa inimigo algum. Seria aplicar a mesma lógica, rejeitada pelos críticos das análises simplistas sobre a violência, de que ‘há inimigos da sociedade’ – lógica que tem os negros como maiores vítimas, é bom que se lembre.

Ação conjunta

Nem a mídia deve ser ocupada unicamente pela razão cínica, nem o Estado pode deixar de dar lugar às diversas vozes que se preocupam com o preconceito. Deve-se evitar que a ocupação acabe se tornando um fim em si mesmo, visto que a autocrítica deve ser constante.

Tentar reverter o preconceito contra o corpo físico, por exemplo, sem atentar para os preconceitos de fundo sócio-econômico ou cultural, é jogar o jogo do nosso personagem cínico, que responde na mesma moeda reduzindo o preconceito fenotipista a um preconceito de viés exclusivamente sócio-econômico. Mas compreendê-los todos é também saber onde um termina e o outro começa, e que formas de ação cada um exige.

Da mesma forma, levar à frente a questão negra sem perceber a solidariedade dos preconceitos é não permitir a ação conjunta. Vítimas de outros preconceitos devem ser convidadas à mesa. Assim como outras pessoas preocupadas com a questão, mesmo pertencendo a grupos não vitimizados, devem ser ouvidas.

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Lingüista e professor de jornalismo