Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A questão da nomenclatura

A pauta política dos grandes veículos obedece à cronologia da conveniência. Os assuntos perdem relevância quando seus desdobramentos contrariam as motivações que inicialmente justificaram a exploração dos fatos. Portanto, antes que outros motes ocupem as atenções gerais, é necessário impedir que a cobertura jornalística sobre a aviação civil mergulhe na obsolescência. Talvez assim entendamos melhor um dos tantos episódios sombrios da história da imprensa brasileira.


A propaganda maquiada de jornalismo inventou o esgotamento infra-estrutural fulminante. Enquanto no resto do planeta fenômenos semelhantes são processos longos e cumulativos, nossa crise aérea floresceu em apenas quatro anos. E o sucateamento do transporte ferroviário? E o Plano Diretor para a Infraero, de 1982, que já sugeria a ampliação de Cumbica e a limitação do movimento de Congonhas? Por que Viracopos foi subutilizado por duas décadas? Não importa. Antes dos gestores petistas, incompetentes e corruptos, voar no país era supimpa.


No entanto, ainda que se concorde com a premissa do colapso, ele não explica todos os eventos identificados com o ‘caos aéreo’. Quem associou a paralisação dos aeroportos à administração federal foram os próprios controladores amotinados. A imprensa usou-os como bodes expiatórios para inaugurar a crise, legitimando suas reivindicações, e depois criticou a demora das autoridades em puni-los.


O movimento acabou em março e o tráfego foi normalizado, mas a simbologia do infortúnio permaneceu. Quando rompemos as mistificações do noticiário, descobrimos que os problemas nos aeroportos são superdimensionados e embaralhados para transmitir a falsa impressão de uma crise generalizada e ininterrupta. A maioria dos vôos realizados nos últimos cinco meses transcorreu normalmente, exceto sob condições atmosféricas inadequadas. Entretanto, mesmo atrasos de poucos minutos e problemas causados por neblina ou tempestades entram na conta do ‘apagão’.


Governo criminoso


Para o colunista Ricardo Daudt, o governo ‘assassinou mais de duzentas pessoas’, porque ‘sabia’ que os acidentes iriam ocorrer. Reinaldo Azevedo concordou: ‘As mortes têm a ver com o governo federal’, que é ‘assassino culposo’, pois fabricou ‘360 mortos’. Diogo Mainardi ressaltou o ‘descaso criminoso’ e a ‘barbárie aérea’. Mesmo quando não chega a esse nível de insensatez, a maioria dos analistas afirma que as tragédias teriam sido evitadas em outro contexto administrativo.


Mentira. O choque do Boeing da Gol com o jato Legacy foi causado por erros dos controladores de vôo e dos pilotos estadunidenses. A explosão do Airbus da TAM originou-se numa falha mecânica, provavelmente agravada por imperícia do piloto. O governo federal não influenciou as fatalidades, cuja relação causal com um suposto ‘apagão’ é nula. Crises aéreas não desligam transponders, não travam reversos nem pousam com manetes em posição errada.


Apenas cínicos e insensíveis culpam governos por acidentes dessa natureza, politizando terríveis perdas humanas, manipulando a comoção pública e desprezando o rigor apurativo. Até desabafos indignados estão sujeitos aos limites da decência e da legalidade – por isso nenhum idiota saiu gritando que Fernando Henrique Cardoso e seus tucanos eram culpados pela queda do Fokker 100 da TAM, em 1996.


O mais preocupante dessas deturpações é que elas contribuem para a sobrevivência dos problemas reais. As empresas aéreas, eternas causadoras de transtornos, aproveitam a tolerância da mídia (afinal, são grandes anunciantes) para incrementar sua rotina de abusos e desrespeitos contra os passageiros. Funcionários grosseiros, overbooking, filas intermináveis e aeronaves defeituosas viraram sintomas da enfermidade petista. Previsivelmente, assim que as práticas lesivas receberem punições merecidas, o governo será acusado de planejar a falência das companhias.


Independência ou ignorância?


Cerca de duas mil pessoas morreram nas estradas paulistas desde outubro, quando o tal ‘apagão’ surgiu. Cinco vezes o número de mortos nos acidentes aéreos. Na capital, o trânsito vive em colapso permanente, escancarando a saturação dos transportes públicos. Há décadas, todo dia, milhões de cidadãos enfrentam congestionamentos gigantescos, com média de absurdos 111 km nos horários de pico.


O excesso de veículos está para os congestionamentos como o aumento de passageiros para o caos nos aeroportos. A falta de verbas que justifica uma ridícula malha metroviária também explicaria a escassez de terminais e pistas. As mesmas chuvas que param o trânsito impedem pousos e decolagens. Mas por que ninguém enxerga um ‘apagão dos transportes’ em São Paulo?


Os defensores da mídia oposicionista argumentam que essa polêmica se resume a um estéril debate sobre nomenclaturas. E talvez estejam certos. A essência das coisas independe do vocabulário utilizado.


Se existe quem equipare saguões tumultuados às sobretaxas, racionamentos e blecautes do governo FHC, é razoável que alguém veja na ‘crise aérea’ uma invenção midiática. Se ‘apagão’ não define uma calamidade que afeta diariamente uma população proporcional à da Bélgica, a prudência aconselha não ver apagões em lugar algum. ‘Golpista’ representa apenas um adjetivo possível para uma imprensa que se desvia de suas atribuições constitucionais com o objetivo de ludibriar o (e)leitorado. Chamá-la ‘democrática’ não modifica sua natureza.


O mesmo vale para os comentaristas. Clóvis Rossi qualifica seus críticos como ‘debilóides do lulo-petismo’. Augusto Nunes prefere ‘subespécie’, ‘idiotas’ e ‘cretinos’. Outros usam ‘chimpanzés’, ‘raça maldita’ e ‘imbecis’. Se esse jargão demonstra independência ou ignorância, cabe ao público avaliar. O fato é que a expressão ‘apagão aéreo’ encaixa-se perfeitamente no repertório dos seus divulgadores.

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Historiador e escritor, autor do romance Crisálida (Editora Casa Amarela); www.guilherme.scalzilli.nom.br