Thursday, 09 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

A História passada a limpo

Vala Comum é o nome de um documentário do cineasta João Godoy, de 1994, no qual reúne depoimentos tocantes de familiares dos desaparecidos políticos, vítimas da famigerada ditadura militar. Dentre eles, os de Gilberto Molina, Gertrudes Mayr, Ivan Seixas, Egle Leme e Felícia Oliveira. Gilberto é irmão de Flávio Molina, morto em 1971. Gertrudes é mãe de Frederico Mayr e Ivan é filho de Joaquim Seixas, tendo sido preso juntamente com o pai, posteriormente assassinado. Egle, por sua vez, é mãe de Alexandre Vannucchi Leme e Felícia é mãe de Isis Oliveira. Todos eles vítimas da ditadura militar. Todos mortos pelo regime dos generais, que na ocasião ocupavam o Palácio do Planalto. Os depoimentos de Gertrudes Mayr e Egle Leme são especialmente emocionantes.

Quando se olha para dona Egle, mãe de Alexandre, mal conseguindo esconder as lágrimas, tem-se a nítida sensação de estar diante de uma nobre senhora. Digna e bela. No documentário, ela conta que ficou sabendo da prisão do filho graças a um telefonema anônimo recebido pelo filho caçula, José Augusto. Alexandre foi preso, torturado e morto no II Exército (DOI-Codi) na capital paulista, em março de 1973. A versão oficial, contudo, divulgada pela imprensa, diz que ele teria sido atropelado por um caminhão na esquina da Rua Bresser com a Avenida Celso Garcia, em São Paulo, no momento em que fugia de um cerco policial.

Há testemunhas, entretanto, que viram o rapaz ser arrastado da cela esvaindo-se em sangue. O corpo de Alexandre foi jogado numa vala no cemitério de Perus, em São Paulo, sem identificação, como se indigente fosse, e só foi encontrado por seus familiares anos depois. Sua morte provocou verdadeira comoção, culminando, na ocasião, em uma missa realizada na Catedral da Sé, com a participação de mais de 3 mil pessoas e celebrada pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns. Alexandre tinha apenas 22 anos quando foi morto, era um militante de esquerda, ligado à Ação Libertadora Nacional (ALN), e cursava Geologia na Universidade de São Paulo (USP).

Um novo atestado de óbito

Na última sexta-feira (15/03), ainda que tardiamente, em uma solenidade realizada na sede do Instituto de Geociências da USP, o governo federal finalmente fez seu mea culpa e quatro décadas depois reconheceu Alexandre Vannucchi Leme como anistiado político pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, admitindo ainda que o rapaz foi morto durante uma sessão de tortura no DOI-Codi e que não se tratava, em absoluto, de um terrorista, como os militares à época dos fatos alardearam.

No mesmo evento, os familiares do jornalista Vladimir Herzog, igualmente morto durante a vigência da ditadura militar, receberam um novo atestado de óbito, retificado por determinação da Justiça, que agora aponta como causa da morte “lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do DOI-Codi” e não mais “enforcamento por asfixia mecânica”, como atestava o documento anterior, divulgado oficialmente pelos militares em 1975.

Estiveram presentes à cerimônia de entrega do atestado a ministra Maria do Rosário (Direitos Humanos), o presidente da Comissão da Anistia e secretário Nacional da Justiça, Paulo Abrão, e o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro, além de Rosa Cardoso, integrante da mesma Comissão Nacional da Verdade, que entregou o documento a Clarice Herzog, viúva de Vlado, ao filho Ivo e ao neto Lucas.

Insulto à inteligência

Num momento como esse, impossível não lembrar de um certo editorial da Folha de S.Paulo, veiculado no dia 17 de fevereiro de 2009, cujo tema então abordado era a vitória de Hugo Chávez no referendo do domingo anterior (15/2), coisa que lhe conferia o direito de concorrer a mais uma eleição presidencial na Venezuela. Lá pelas tantas, o editorialista desavergonhadamente afirmava que, no caso do Brasil, entre os anos de 1964 e 1985, o que houve, na verdade, foi uma “ditabranda”.

O neologismo acabara de ser criado pela Folha muito embora seu autor tenha se referido às “chamadas ditabrandas”, como se o verbete já existisse. Era, pois, de se esperar a reação indignada da sociedade que se seguiu imediatamente após a publicação do texto. Alguns dias depois, houve uma manifestação de protesto com a participação da sociedade civil, de partidos políticos, de estudantes e dos familiares das vítimas do regime militar. A manifestação foi ainda um ato de desagravo aos professores Fábio Konder Comparato e Maria Vitória Benevides, igualmente desqualificados e ofendidos pela Folha.

Francamente! Dizer na principal página de opinião de um dos principais jornais do país que em vez do regime de exceção o que se viu no Brasil foi antes uma “ditabranda” soou como um insulto à inteligência nacional; ao povo brasileiro. O editorialista certamente não leu Zuenir Ventura (68 – O Ano Que Não Terminou), Fernando Gabeira (O Que É Isso, Companheiro?), Frei Betto (Batismo de Sangue) nem Elio Gaspari (A Ditadura Encurralada) ou mesmo Verdade Tropical, de Caetano Veloso, que embora aborde mais o surgimento do movimento tropicalista no país tem também como pano de fundo o cenário político da época.

Página virada, mas jamais esquecida

O editorialista também não deve ter lido a biografia autorizada do Geisel – feita em dobradinha pelos jornalistas Maria Celina D’Araujo e Celso Castro. No livro, nada ou quase nada foi dito nas entrelinhas. Está tudo lá, explicitamente documentado, para quem quiser saber. Termos e verbetes como “recrudescimento do regime”, “generais linha dura”, “tortura”, “subversão”, “junta militar” e “anistia política”, entre outros, são recorrentemente usados. Especialmente significativos são os capítulos 11, 12, 13 e 21.

O 4º e penúltimo presidente militar da República Federativa do Brasil, Ernesto Geisel, admitiu, sim, em suas memórias, a existência da ditadura com tudo o que ela teve de pior, encabeçando esse rol os Atos Institucionais 2 e 5 que, juntos, fecharam o Congresso Nacional, cassaram mandatos políticos de parlamentares, instituíram eleições indiretas, impuseram a censura aos meios de comunicação, amordaçaram a classe artística e instauraram no país um período de obscurantismo.

Com este novo atestado de óbito, a morte de Vladmir Herzog talvez tenha sido finalmente passada a limpo, ao se rejeitar a versão oficial do “suicídio”. Como bem lembrou seu filho Ivo, no entanto, a luta da família Herzog continua, uma vez que agora também é preciso que se investigue em que circunstâncias tais fatos ocorreram. A família de Alexandre Vannucchi Leme, por seu turno, agora tem ao menos o consolo de ter recebido por parte do governo federal um pedido oficial de desculpas pelo sofrimento e constrangimento a ela infligidos, durante todos esses anos. A declaração formal de anistia concedida a Alexandre certamente ajuda a reescrever a História; porém, como bem disse Maria Cristina, irmã do rapaz, na solenidade da USP, trata-se, sim, de uma página que foi virada, mas jamais será esquecida.

******

Rita de Cássia Arruda é jornalista, Brasília, DF