Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Experientes e desempregados

O jornalista recém-formado precisa de um emprego para obter experiência. Ele pode começar numa redação pequena ou numa das maiores do país, pode trabalhar para sites, rádios, revistas ou TVs. Ele precisa aprender a ganhar velocidade sem perder a concentração, aprender a fazer associações, estudar a pauta antes de sair para a rua, saber o que é um jabá e o que o separa de uma boa matéria, lidar com o tempo curto fazendo o melhor texto possível, entrevistar absorvendo a alma do entrevistado sem constranger e sem cair no outro extremo, o canto da sereia. O jornalista recém-formado tem conseguido emprego, os estudantes têm feito estágios, ainda que não haja vagas para todos.

Dá até para notar que isso ocorre em grande escala, as redações substituíram jornalistas experientes por novatos; a quantidade de erros é enorme e o fato de o mercado ter aberto mais oportunidades para os estagiários tem trazido uma espécie de síndrome do estagiário em todas as profissões, nas repartições públicas e nas privadas. A síndrome do estagiário se resume por aquele telefonema, cada vez mais comum, que tem respostas evasivas e pouco convincentes, típicas de pessoas que não dominam o ambiente profissional e que certamente necessitam dessa experiência para evoluir profissionalmente, chegando ao posto do primeiro emprego, quando finalmente são contratadas.

Nas outras áreas talvez seja aqui e ali diferente, mas no jornalismo uma das características que os primeiros empregos trazem, principalmente nas grandes redações, é a certeza de que um repórter não consegue fazer jornalismo a não ser tecnicamente, o que é coisa para recém-formados. Um editor, mesmo tecnicamente bom, não faz jornalismo se estiver empregado num jornalão ou numa revista semanal que faz política. Porque jornalismo é cobrir política, não fazer politicagem. Na economia e na agricultura é a mesma coisa; defender o interesse do patrão, grande proprietário de terras, é não dar vazão à notícia que interessa aos pequenos, que os levaria ao crescimento. Cobrir cultura num grande jornal é um nojo, porque só se cobrem celebridades, os estouros fabricados pelo marketing. A cultura popular está totalmente fora da cobertura das grandes corporações. Comportamento, tema que poderia ser riquíssimo, nunca passa de variedades e troca de opiniões vaidosas entre profissionais que viraram ‘mídia’. ‘Eu sou mídia, eu sou mídia’, gritava aos quatro ventos uma psicóloga escolhida para ser consultora de uma dessas revistas femininas. Esse universo tosco das redações é uma balela, é de estranhar que um profissional demitido tenha só sofrimento ao se ver livre para pensar, pesquisar e escrever.

Lição de submissão

Um profissional tarimbado, quando perde o emprego, pode achar que a única saída é a assessoria de imprensa e amargar o resto da vida fazendo matéria de encomenda. Não estará fazendo coisa muito diferente do que faz quando cobre notícias, tapeando o leitor para defender os interesses do dono do jornal. Sob esse ponto de vista, assessoria é até mais transparente. O assessor não engana o leitor, no máximo passa a perna no editor, que por tédio, ou algum interesse, publica o release com cara de matéria.

O jornalista experiente, que já não precisa testar sua capacidade associativa, velocidade, concentração, curiosidade e desejo para pesquisar e fazer boas matérias, pode dar graças a Deus por não estar mais em redação, engolindo sapos, fazendo verdadeiros crochês com as palavras para dizer o que não pode ser dito porque o editor, testa-de-ferro do diretor, que por sua vez é testa-de-ferro do dono da empresa, não vai aceitar.

Uma vida inteira numa redação é uma lição de submissão que nunca termina, mas vai domesticando os mais submissos para que subam degraus cada vez mais estreitos; às vezes esses degraus levam à promiscuidade, em outras tudo não passa de um grande embotamento, no qual a pessoa vive meio morta, perde o eixo vital da profissão, faz tudo no automático, entre a ironia e o sarcasmo. Nesse universo lodoso a competitividade desenfreada e o medo de perder o emprego casam-se e dão à luz um filho torto: o não-jornalismo.

Mais edificante

É absolutamente certo que não é fácil encontrar escoadouro para boas matérias. Revistas, jornais, rádios e sites que fazem bom jornalismo já estão com suas grades lotadas, operam com caixa menos rentável, já que são fritados pelos anunciantes maiores, mas podem ser um caminho melhor para se praticar a profissão de um jeito mais saudável e digno.

Assessoria de imprensa não serve, a longo prazo, para quem fez jornalismo, gosta de jornalismo e não quer abandonar a profissão. Tentar inflar com um bom trabalho os meios de comunicação que andam na contramão da massificação pode ser um começo, mas não um fim, uma solução única. O gosto do jornalismo é o sabor dos fatos. Um livro, por exemplo, pode ser feito a partir de várias matérias sobre o mesmo tema; vários fatos associados que juntos formam uma história. Estar desempregado e ter que dar uma de assessor de imprensa para defender as contas no fim do mês pode significar ter tempo para investir num projeto jornalístico próprio. Escrever o próprio texto é a melhor terapia quando o cérebro está alugado pelos ditames do mercado.

Trabalhar em jornal do interior, dependendo do caso, pode ser muito melhor e mais edificante do que trabalhar num jornalão; as saídas para quem tem experiência são muitas, já para os principiantes são poucas. Salvando-se um ou outro iniciante espetacular que normalmente entra direto na ficção ou na pesquisa histórica, o resto normalmente chega muito cru da faculdade e precisa passar pelo inferno das redações atuais. Quem está bem sentado no trono da profissão não precisa da cadeira de uma redação, a não ser que aspire apenas à cadeira e aos miserês egóicos que a circundam.

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Jornalista