Tuesday, 14 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Fada madrinha também é bicho-papão

Os desacertos entre o governo e o partido do governo evidenciados na reunião do Diretório Nacional do PT em Salvador ficam ainda mais gritantes no campo da mídia. O pelotão militante mostra o tacape enquanto o grupo de burocratas sediado em Brasília oferece o cachimbo da paz. Pode ser estratégia, malandragem, mas não é a melhor maneira de solucionar problemas.


O PT considera que os meios de comunicação ‘foram derrotados pela reeleição de Lula’ e atribui a eles uma ‘campanha para enfraquecer e desestabilizar o primeiro mandato petista’ (Folha de S.Paulo, 12/2, pág. A-4). Em função desta avaliação, o PT oferece quatro medidas saneadoras para desenvolver sistemas alternativos de comunicação social tanto públicos como privados.


Mas dias antes, na sexta-feira (9/2), o governo, por intermédio do ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, baixou a portaria nº 264 sobre a Classificação Indicativa para a programação de TV que atende claramente aos interesses da mídia eletrônica, isto é, a mídia privada reacionária.


Não se pode dizer que seja uma capitulação do governo à pressão conjugada do patronato televisivo, mas não está longe de constituir uma saída honrosa para uma crise que parecia inevitável.


Marco institucional


Pela portaria – leia aqui–, as concessionárias terão a primazia para classificar a programação de acordo com as faixas etárias (o que equivale a colocar a raposa como gerente do galinheiro). A sociedade, porém, terá o direito de espernear. E se o governo entender que as emissoras não levaram em conta os interesses da sociedade nem as suas responsabilidades sociais, então poderá intervir e alterar a classificação inicial.


O correto, o legítimo e o que atenderia ao interesse público seria justamente o contrário: segundo a Constituição, quem deve estabelecer as bases da classificação é o governo, em nome da sociedade. As emissoras, na condição de concessionárias, têm a obrigação de obedecer, embora lhes seja facultado o direito de reclamar – como acontece em qualquer regime democrático.


O governo foi eleito pelo povo, tem legitimidade e a obrigação de impor uma classificação preliminar para estabelecer padrões e marcos. As emissoras que se sentirem prejudicadas podem apelar. O ônus da reclamação não deve ficar com o poder concedente e, sim, com os concessionários.


Acontece que o governo não quer nem pode brigar com a base aliada; sabe que no PMDB e em outros partidos não-ideológicos abrigam-se poderosos grupos de comunicação regionais e nacionais (caso de José Sarney e da Rede Record). Não pretende provocá-los.


Foram as redes de TV aliadas do governo no Congresso que conseguiram, três anos atrás, afastar o encarregado do Ministério da Justiça 24 horas depois de fazer alterações tópicas, porém pertinentes, na classificação da programação (ver ‘Demissão e a vitória da mediocridade‘, 10/2/2004).


Cumprindo com a tarefa de bicho-papão, o Diretório Nacional deixou de lado a condescendência e partiu para o ataque com as seguintes ameaças:


** Construção de um sistema público de rádio e TV.


** Estímulos ao aparecimento de uma mídia ‘privada e progressista’.


** Estímulo à produção de conteúdos qualificados.


** Mudança no marco institucional da comunicação dirigindo-o para as organizações sociais.


Veículos autônomos


Acontece que o país já dispõe de um sistema público de rádio e outro de TV. Neste último, há um núcleo em funcionamento – a Abepec (Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais) – que já conta com duas grandes redes subsidiárias (a TVE baseada no Rio e a Rede Cultura, em São Paulo), ambas com razoável penetração, muito prestígio e grandes feitos.


Este núcleo só não consegue se transformar em sistema operativo porque está desprovido de recursos, já que ao governo federal não interessa oferecer qualquer tipo de suporte à rede que não esteja sob sua direta influência.


Com um pouco mais de espírito público, mais empenho realizador e menos partidarismo, o tal sistema agora proposto pelo Diretório Nacional do PT poderia materializar-se ainda neste ano através de uma programação conjunta. Do jeito que foi apresentado em Salvador, configura mais uma destas incríveis duplicações tão comuns na vida administrativa do país.


No tocante aos estímulos à mídia ‘privada e progressista’, é preciso avisar aos dirigentes partidários que ela já existe e está sendo ostensivamente estimulada há algum tempo por meio do apoio publicitário das estatais federais. O ideal seria que dentro do critério de ‘progressista’ fossem incluídos também os atributos de independência, de modo que esses novos veículos a serem produzidos nos laboratórios do oficialismo consigam oferecer à sociedade um mínimo de diversidade e equilíbrio.


De nada adiantará criar uma mídia antimídia, enfezada, radical. Será mera caricatura da outra. Nem o engajamento nem a polarização da mídia poderão beneficiar o cidadão brasileiro. Mas o bom senso e a ponderação podem ser decisivos para restabelecer a confiança do cidadão na sua imprensa.


O que falta ao jornalismo brasileiro são veículos desligados de interesses políticos e econômicos – autônomos, verdadeiramente liberais (no sentido político), com coragem para escapar das armadilhas e seduções do poder.


Essa mídia foi essencial para a criação do PT em seguida ao fim da censura. É uma lástima que, 27 anos depois, estes paradigmas estejam completamente esquecidos.