Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Imprensa entre a cruz e a espada

A virada de ano não poupou a humanidade das provações de sempre. Bem ao contrário, 2009 começou, por assim dizer, botando para quebrar, tanto aqui como alhures. No Brasil, com o tradicional massacre das estradas e as desgraças causadas pelas variações climáticas, que a cada dia parecem mais intensas. No Oriente Médio, com o eterno conflito entre árabes e judeus voltando a promover cenas de destruição e sofrimento cuja dramaticidade a mídia tem se encarregado de tornar tão palatável quanto pão amanhecido. Ou seja, de dolorosa monotonia.


Monotonia decorrente, é bom que se frise, muito mais da recorrência do triste ritual de retaliação mútua entre aqueles povos do que propriamente por culpa da mídia. Que embora de certa forma acuada e sujeita às manipulações de praxe, por força da sabidamente forte simpatia do grosso da mídia ocidental pela causa sionista, tem alimentando ad nauseam o tradicional show de horrores de um conflito que parece não ter a mínima chance de acabar.


Sim, pois se as guerras tradicionais, travadas sob motivações hegemônicas, geralmente têm prazo para acabar, em relação às seculares rixas étnico-político-religiosas o buraco costuma ser bem mais embaixo. Não é à toa que acabem ensejando as soluções mais radicais, como as atrocidades praticadas por ditaduras e regimes totalitários.


Vítima do próprio veneno


É, pois, justamente aí que reside o grande dilema que se apresenta à imprensa, e não só em relação a este como a outros conflitos em que uma eventual disparidade de forças entre os litigantes possa ser encarada como abusiva, moralmente condenável ou até criminosa. Como tem sido invariavelmente associado às intervenções dos Estados Unidos, militares ou não, em praticamente todos os cantos do mundo, sob o slogan do imperialismo tão execrado por seus oponentes.


O diabo é que lidar com tais questões com isenção e eqüidistância não deixa de ser um desafio tão complicado para a imprensa como o é para acomodar os interesses, no mais das vezes inconciliáveis, que alimentam essas guerras intermináveis. Até mesmo porque o comprometimento com as causas locais acaba sendo não só inevitável como preponderante. O que, no caso dos Estados Unidos, explica – mas não justifica, é claro – a verdadeira cumplicidade da mídia nativa com a tradicional política intervencionista do país, e como tal, cooperando para a consumação de equívocos gigantescos como foi a invasão do Iraque, baseada em evidências – hoje se sabe – criminosamente manipuladas pelo governo Bush.


Eventuais alinhamentos com políticas governamentais obviamente não são exclusividade da imprensa norte-americana; a verdade é provavelmente o oposto, ou seja, é raro o país em que a imprensa não se preste a esse tipo de favor. Isto sem falar dos regimes fechados, em que os governos sequer dão espaço para qualquer tipo de dúvida, ou se publica a versão oficial ou… – as masmorras chinesas, cubanas, russas etc. que o digam. O problema é que a liberdade de expressão também não tem sido garantia de um jornalismo condizente com a nobre missão historicamente reservada à imprensa, que por ironia tem ficado cada vez mais sujeita a provar do próprio veneno, com o crescente questionamento de seu papel graças à expansão dos meios de comunicação.


Novas lideranças


Questionamento o qual, em relação à ocupação de Gaza, nem mesmo o cerceamento imposto pelo governo israelense tem livrado a imprensa internacional da acusação de conivência com o que consideram ação desproporcional à ameaça representada pelos foguetes caseiros do Hamas. O que parece tão inegável quanto o fato de que a disposição de revidar da guerrilha palestina em nada contribui para serenar os ânimos. O que torna o Hamas no mínimo co-responsável pelo tal genocídio denunciado pelos defensores da causa palestina, ainda mais pela inutilidade de atentados que servem apenas para botar mais lenha na fogueira.


Provocar é na verdade tudo o que os radicais palestinos têm feito desde a morte da velha raposa Yasser Arafat, de cuja liderança aqueles povos até hoje se ressentem, tanto no campo diplomático como para aglutinar as forças dispersadas pelas discórdias hierárquicas entre Hamas e Hezbollah, as duas facções de resistência do movimento. Um caminho que, além de não contribuir em nada para apaziguar a região, tem dado a Israel a desculpa que precisava para resolver a questão com o que tem de sobra: poderio militar.


Legítimo ou não, uma coisa é certa: o 11 de Setembro tornou quase tudo justificável no combate ao terrorismo. Mesmo ações desastradas como a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, mediante provas forjadas pelo governo Bush, tiveram apoio generalizado, salvo honrosas exceções, como a França e seus baluartes da imprensa mundial. Isto no plano visível, pois no ermo das prisões e campos de luta os flagrantes de atrocidades e violações aos direitos humanos por parte das forças norte-americanas em nada ficaram a dever às normalmente atribuídas aos inimigos. A ponto de se oficializar a própria tortura como método de persuasão, depois que as denúncias de abusos praticados em Guantánamo chegaram ao conhecimento público.


Com a lei do mais forte levada ao extremo e os abusos se disseminando de parte à parte, além de uma imprensa nem sempre disposta a combater o chamado trabalho sujo, a única esperança para a pacificação entre os povos parece estar na intervenção de novas lideranças como o presidente francês Nicolas Sarkozy e, sobretudo, Barack Obama. Se ambos falharem, o último que apague a luz.

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Jornalista, Santos, SP