Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Imprensa, ignorância e o apresentador

Zapeando o YouTube (sim, internet hoje em dia se zapeia igualzinho a TV. E o verbo zapear foi roubado do professor Sírio Possenti), achei um vídeo de Alexandre Garcia comentando a polêmica do livro didático Por uma vida melhor. A apresentadora do telejornal, Renata Vasconcellos, começa informando que o MEC distribuiu “um novo livro de português que, digamos assim, defende um novo conceito da língua”. Não sei o que ela entende por “novo”, mas a ciência linguística é mais velha que andar pra frente. Quando o Padre Anchieta, por exemplo, procurou escrever uma nova gramática das línguas indígenas, ele não recorreu aos clássicos, mas ouviu como o índio fazia uso de sua língua. Daí, ele escreveu uma gramática (coisa que não aconteceu com nossa língua, já que nossa gramática é baseada no modo de falar de Portugal, e não do Brasil). E isso foi há mais ou menos 500 anos (nessa época todo mundo andava pra frente). Fora isso, faz mais de 15 anos que os livros de português disponíveis no mercado abordam a variação linguística e seu tratamento na sala de aula. Mas tudo bem. Esse tipo de erro crasso na imprensa chega a ser normal (infelizmente), quando se desconhece do que se está falando.

Depois disso, ela esclareceu que o MEC vai exigir a norma culta da língua nas provas e redações do Enem. Traduzindo: eles não tinham a mínima ideia do que estavam comentando. O ridículo (mas infelizmente necessário) esclarecimento do MEC deixou isso bem claro. Renata passou a bola para Alexandre Garcia, que começou falando que “quando eu tava no primeiro ano e a gente falava errado a professora nos corrigia porque ela estava nos preparando para vencer na vida” (juro como ele disse tava!). Não sei quais eram os “erros” do Alexandre Garcia, mas parece que ele não aprendeu a lição da professora. Tava não existe no dicionário. É uma variação do verbo estava. Ah… (como diria Arnaldo Jabor, com aquele ar de “caiu a ficha”), mas Alexandre Garcia domina a língua culta. Quem domina pode. Quem não domina se pode para não falar “errado”. Traduzindo: ele abonou a tese do livro que estava criticando. Chega a ser engraçado.

Arrogância e deboche

Mas não parou por aí. Continuou falando que o conhecimento liberta, que ajuda a desenvolver um país, entre outras frases de efeito. Estava (olha o “correto”, seu Alexandre) cativando o leitor, ganhando-o para seu grand finale. “E a raiz de tudo”, continuou ele, “está na capacidade de se comunicar. A linguagem escrita que transmite, difunde o conhecimento… diferencia o animal homem dos outros animais.” Traduzindo: a língua é a ortografia. É a ortografia que nos diferencia dos animais. Falar uma bobagem dessas é o mesmo que dizer que você é a sua foto e ponto. E quem acha o contrário (que a foto não é você, mas apenas sua representação), está preso, uma vez que a educação liberta.

E isso (não a foto, mas a ortografia) tornaria a vida melhor. Não sei em que sentido. Se o conhecimento das normas da gramática fosse instrumento de ascensão social, Lula não teria sido nosso presidente, Tiririca não seria nosso deputado e os professores de português seriam os mais bem pagos do mundo. Mas tudo bem. Esse tipo de raciocínio lógico dá trabalho, segundo as palavras do próprio Alexandre Garcia.

Aí, quando você pensa que escutou de tudo, o ser humano tem o dom de se superar (claro, sempre tem a cereja do bolo). Garcia afirma que “aqui no Brasil, alunos analfabetos passam automaticamente de ano para não serem constrangidos” (ele falou isso com aquele ar de arrogância e pitadas de deboche, superioridade e sarcasmo). Frase típica de quem não tem o mínimo conhecimento dos problemas educacionais existentes no país. Afinal, até parece que essa é a questão em torno da reprovação.

E assim caminha a humanidade…

Lembro-me das oficinas que ministrei em escolas públicas. Lembro-me de uma menina que não parava quieta, não demonstrava interesse, não merecia ser aprovada. Lembro-me que perguntei à diretora o porquê dela ser assim. Lembro-me que a diretora me falou que o pai dela tinha matado a mãe. Agora, aqui entre nós (já que se eu escrevesse “cá entre nós” me acusariam de internetês), você acha que o problema dessa menina era por que ela não queria aprender? Tinha preguiça? Você teria coragem de reprová-la? E sobre os alunos que andavam três quilômetros para chegar à escola? Chegam suados. Cansados. “Mas se eles não aprendem”, diria Alexandre Garcia, “é porque não querem, porque aprender dá trabalho.” Mas tudo bem, esse tipo de ignorância é normal para alguém que desconhece o dia-a-dia da educação pública.

A questão da reprovação é estrutural. O problema não é a falta de aplicação de uma educação rígida, mas do sistema. E o MEC tem consciência disso. O raciocínio é simples: quando um ou dois alunos não aprendem nada, ok. A culpa é do aluno. Mas quando a maioria sai da escola sem dominar contas elementares, a culpa já parece não ser do estudante, correto? E um aluno que é reprovado, é desestimulado a continuar os estudos (sem contar que ele vai voltar a refazer uma série do qual dificilmente vai aprender o que deixou de aprender no ano anterior). Claro, não é passar por passar. Mas é entender as limitações do nosso sistema educacional e procurar tapar os buracos aos poucos. Coisa que o MEC vem fazendo (com todas suas limitações, mas vem). E é pensando dentro desse contexto que o MEC desestimula a reprovação.

Alexandre Garcia finalizou seu belíssimo comentário afirmando que no Brasil “se dá uma chancela para ignorância que infelicita”. O que de fato acontece. Para a linguística moderna, reconhecer a variedade não significa combater a norma padrão ou culta. Algo que todos os linguistas cansam de repetir. Mas que com essa “chancela para ignorância” dada pela mídia a comentários de pessoas que estão totalmente alheias aos problemas estruturais de nossa educação, parece que não adiantar falar isso. Ou nisso. Ou disso. Provavelmente, ele acha que fala certinho, dizendo tava no lugar de estava. Não se dá conta do que acontece com a língua dele mesmo. Mas ele pode. Quem não pode é o aluno da escola pública. E assim caminha a humanidade (e nossa imprensa preconceituosa e desinformada).