Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

José Dirceu, personagem literário

Em sua História Universal da Infâmia, Jorge Luis Borges tem um conto que nos ajuda a compreender o deputado José Dirceu, ex-ministro do presidente Lula. Trata-se de O estranho redentor Lazarus Morell.

Não se engane o leitor nessas primeiras linhas. Não vou escarmentar ainda mais aquele que se tornou o saco de pancadas da atual crise, a maior de todas quantas viveu o Brasil até agora. Não vou julgá-lo, como estão fazendo tantos. Julgar é coisa mais demorada, repleta de sutis complexidades, como sabem os juízes. E exarar uma sentença inclui também sentir, como indica a etimologia da palavra latina sententia (sentimento, parecer, opinião). Não fora assim, as causas, ainda que no STF, não trariam tantas discrepâncias, em votações apertadas, semelhando clássicos de futebol muito disputados. Para não demorar ainda mais, lembro apenas que inocentes foram condenados à morte, sem apelação, e muito mais tarde descobriu-se que eram inocentes.

José Dirceu, haja o que houver com ele, já nos pertence, é nosso personagem, é dos escritores cujas prosa e poesia têm perigosas ligações com a sociedade epocal. Mas de passagem cumpre lamentar a corte de ágrafos que rodeia o presidente Lula, indivíduos incapazes de ler um livro. Quando muito, citam um verso de ouvido, uma frase que leram em jornal ou revista. Mas o livro? Cadê os livros?

Na recente viagem à nação do livro, como é reconhecida pela Unesco a França, os organizadores da comitiva presidencial, como sempre fazem, apresentaram os signos dos cartões postais do Brasil: baianas vestidas a caráter. Que não sejam excluídas, mas por que escritores jamais são convidados?

Outras vezes, os próprios jornalistas dão nefasta contribuição. Em 1994, quando o Brasil foi tema da Feira de Frankfurt, Affonso Romano de Sant’Anna, então presidente da Biblioteca Nacional, esbaldava-se em caprichar na apresentação de autores e livros brasileiros. Pois quando um grupo de escritores ia entrar ao vivo no Fantástico para comentar a festa, eis que surgem dois ou três cantantes que começam a rebolar. Foi o que bastou para que o foco mudasse e não fôssemos ao ar. Entraram eles. E quem perdeu foi, como sempre, o distinto público.

Espetáculo fugaz

Boa parte dos ministérios de Lula herdaram o estranho vício do governo anterior, de pautar-se pela mídia, que neles reina soberana – pois a raiz dos escândalos não são justamente empresas de publicidade? –, ainda que, supostamente, contra o perfil dos ministros que os comandam.

Com efeito, como imaginar que um ministro do estofo intelectual de Márcio Thomaz Bastos, de atuação decisiva para evitar o fiasco que seria a expulsão do jornalista Larry Rohter, comande uma Polícia Federal que tenha mobilizado dezenas de policiais federais e auditores da Receita Federal para fazer o estardalhaço que fizeram para flagrar o óbvio na Daslu: mercadorias como bolsas e vestidos vendidos por centenas de dólares, com notas fiscais de entrada na loja em preços que variam de cinco a cem dólares?

Uma silenciosa visita de fiscais poderia render muito mais para o Fisco, mas não traria o espetáculo. E é de espetáculo que o governo pensa precisar. Ledo engano! O espetáculo só dura os fugazes instantes do show. Depois será apenas outra camada de pó sobre o pó das camadas anteriores.

Resistência renhida

A quem pensa o governo que engana? Submisso ao sistema financeiro internacional, aos pés do qual está algemado e de joelhos, jamais invadirá simples agência bancária que esteja extorquindo os brasileiros a juros reconhecidos de mais de 10% ao mês!

O mesmo promotor que veio à televisão mostrar um ursinho com arma escondida como prova da periculosidade de Suzane Richthofen, conclamando, pela mídia, a população a ver o quanto é perigoso cumprir a lei no Brasil – sim, ela foi solta à luz do que regem as leis – faria o mesmo com um extrato bancário ou de cartão de crédito, mostrando iguais ou superiores perigos? A mesma Constituição que serviu de base à soltura de Suzane Richthofen desautoriza a usura e no entanto ela é praticada até por instituições federais de crédito.

Pois é nesse mundo cujos fragmentos alinhavo nesse artigo ligeiro que se move o estranho redentor José Dirceu. De líder estudantil passa a guerrilheiro urbano. Preso, integra o grupo trocado pelo embaixador seqüestrado. Vive uma temporada em Cuba, volta e hiberna por anos no oeste do Paraná, como silencioso dono de uma lojinha – nada a ver com a Daslu –, onde casa e tem um filho, anos depois também dedicado à política, como o pai, que, aliás, recentemente o ajudou muito.

Nomeado capitão do time de Lula, semelha ser um primeiro-ministro, cargo inexistente em nosso regime presidencialista. Envolvido em falcatruas de um assessor, hiberna de novo, mas desta vez no palácio e no cargo.

Denunciado pelo deputado Roberto Jefferson, como mentor do mensalão, recebe ordem de deixar o cargo imediatamente para não vitimar um inocente, no caso o presidente Lula. E – só no Brasil – cumpre a ordem!

Ao fazer o caminho de volta, do Planalto à planície (interessante a inicial minúscula neste e maiúscula no outro vocábulo, quando a planície é maior e mais importante do que o Planalto), ensaia monumental resistência de militantes, assessores pagos, militantes profissionais, todos com cargos bem remunerados para fazer o que fazem. Mas por enquanto foi só. Agora ocupa-se em produzir sua defesa, no Congresso e certamente no Judiciário.

Personagem grandioso

Jorge Luis Borges situa o berço do estranho redentor Lazarus Morell numa causa remota: em 1517, o padre Bartolomeu de las Casas, para redimir os índios do inferno das minas de ouro das Antilhas, propôs ao imperador Carlos V a importação de negros para trabalharem nas mesmas minas e nas mesmas condições.

Numa das passagens mais interessantes, Lazarus Morell abre a Bíblia ao acaso e prega uma hora e vinte minutos numa igreja, tempo suficiente para seus colegas roubarem os cavalos do auditório, roubados num Estado e vendidos em outro. Além de roubar cavalos, roubam também escravos, a quem propõem uma liberdade em etapas. O escravo deveria fugir do patrão e deixar-se vender por eles para outro dono, recebendo uma percentagem. E assim sucessivamente até alcançar a pretendida liberdade, jamais alcançada. No lugar dela, ‘um balaço, uma punhalada baixa, um golpe, e a as tartarugas e os barcos do Mississípi recebiam a última informação’. (A tradução das obras de Borges foi obra inicial de um grupo de intelectuais do Brasil meridional, entre os quais Carlos Nejar, Alfredo Jacques, Flávio José Cardoso e Lígia Averbuck).

Borges conclui sua narrativa assim:

‘Morell capitaneando sedições negras que sonhavam enforcá-lo, Morell enforcado por exércitos negros que ele sonhava capitanear (…). Contrariando toda justiça poética (ou simetria poética), nem mesmo o rio de seus crimes lhe serviu de tumba. Em 2 de janeiro de 1835, Lazarus Morell faleceu de uma congestão pulmonar no hospital de Natchez, onde se internara sob o nome de Silas Buckley. No dia 2 e no dia 4, quiseram sublevar-se os escravos de algumas plantações, mas foram reprimidos sem maior efusão de sangue’.

Qualquer semelhança com José Dirceu, em se tratando de personagens literários, é mera coincidência. Todavia convém prestar atenção ao alerta feito por um dos homens de ouro do presidente, o ministro Tarso Genro, para quem o Brasil pode virar uma Colômbia, se os brasileiros pobres perderem esta última esperança que levou um operário à presidência da República.

Mas quem esteve comandando até agora o aborto dos sonhos de uma sociedade organizada e feliz, com as necessidades básicas de todos atendidas? Justamente a cúpula do Partido dos Trabalhadores. É, pois, chegada a hora do grande madalenismo e não dos esquemas e versões calcados na mais equivocada das suposições: a de que o povo brasileiro é bobo! Já cometeram este erro uma vez. O povo brasileiro, generoso e clemente, mais do que muitos outros povos, acolherá os arrependidos sinceros, mas abominará os mentirosos, como, aliás, já está fazendo.

Haja o que houver com José Dirceu, porém, ele já é grandioso como personagem. A História do Brasil não poderá ignorá-lo. Os escritores que gostam de misturar História e Ficção, muito menos!

[Versão resumida deste artigo foi publicada no Jornal do Brasil, em 19/7/05]