Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mais do que constatar, entender

A manchete da Folha de S.Paulo de quarta-feira (5/1), ‘PMDB usa salário mínimo para obter cargo; Dilma reage’, narra uma chantagem política: o partido do vice-presidente da República, Michel Temer, ameaça votar uma proposta de salário mínimo acima do estipulado pelo Planalto se não se sentir ‘contemplado’ na distribuição de cargos no governo. Na noite do mesmo dia a mídia eletrônica noticiava que o líder do PMDB na Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (RN), disse que não se trata de retaliar. Mas não descartou a discussão do valor do salário mínimo. Em paralelo, informava-se que já há cinco candidatos à presidência da Câmara.


A reportagem em que se desdobra a manchete da Folha deixa escancarada a motivação capaz de unificar os feudos da antiga legenda de Ulysses Guimarães (e de Orestes Quércia). ‘O partido acusa o PT de tomar-lhe cargos estratégicos no segundo escalão, caso da presidência da Funasa, dos Correios e órgãos do setor elétrico, tradicionais redutos peemedebistas’, lê-se.


De apetites e rasteiras


Não há por que duvidar do apetite do PT, que nessas disputas de poder há muito deixou de diferenciar-se dos demais partidos. Desse ponto de vista, é problema das máquinas partidárias. O simples cidadão pode dar de ombros e pensar: eles que se engalfinhem.


Por sinal, o alto nível das confabulações está expresso nas palavras do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) diante da decisão da presidente Dilma Rousseff de congelar as nomeações até que sejam eleitas as Mesas do Congresso: ‘O congelamento, por si só, não adianta, principalmente se for para passar a perna depois. Precisamos estabelecer parceria’. Como qualificar um processo político que trafega entre ‘passar a perna’ e ‘estabelecer parceria’?


A presidente estupefata


No Estado de S.Paulo, que deu manchete semelhante (‘PMDB usa alta do salário mínimo para retaliar Dilma’), explica-se que as nomeações foram suspensas a pedido de Michel Temer, para ‘acalmar o PMDB’. E, em seguida, uma informação reveladora: ‘A nova ofensiva do principal aliado governista deixou Dilma estupefata, segundo assessores’. Não é para menos. Faz pouco mais de dois meses ela foi eleita por ampla maioria para o cargo que lhe atribui a responsabilidade pelas nomeações. Mas, pensando bem, quem passou cinco anos na Casa Civil não pode se espantar com essas coisas.


O olhar da cidadania


Do ponto de vista do conflito entre máquinas, volte-se ao que pode ser o raciocínio do simples cidadão: quem pariu Mateus que o embale. Mas há outro ponto de vista, sintetizado na linguagem política brasileira pela palavra cidadania. As empresas e órgãos são públicos e seus destinos afetam toda a sociedade. Nesse terreno, a imprensa está devendo explicações pelo menos tão didáticas quanto as fornecidas por Roberto Jefferson quando ficou acuado, em 2005, e resolveu se agarrar ao aliado PT, aos berros, para não afundar sozinho no pântano.


O episódio do mensalão revelou muita coisa dos bastidores das alianças que lastrearam a ‘governabilidade’ para o presidente Lula. Não faz sentido que agora a informação fornecida ao público seja de qualidade inferior à então oferecida. Na verdade, o cenário é o mesmo que existiu na gênese do mensalão. E não há garantia prévia contra algum tipo de condução desastrada que desemboque em nova crise. No Estado, informou-se que o tom da reação do ministro da Fazenda, Guido Mantega ‒ ‘Se vier algo diferente disso [salário mínimo de R$ 540], vamos simplesmente vetar’ ‒ foi considerado ‘forte demais’ e criticado no Planalto.


Práticas escusas


O que mais se reivindica saber? A reportagem da Folha contém um quadro ilustrativo onde, ao lado do nome de cada empresa disputada ‒ Correios, Infraero, Caixa, Banco do Brasil, Eletrobrás e Furnas ‒, do Dnocs, órgão do Ministério da Integração Nacional, e da Funasa, órgão do Ministério da Saúde, duas colunas situam o ‘PMDB sob Lula’ e o ‘PMDB sob Dilma’. Lê-se aí, por exemplo, ao lado do nome Funasa: sob Lula, ‘Comando é indicação do PMDB da Câmara; empresa [sic] é tradicional território peemedebista’; sob Dilma, ‘Um dos principais focos da briga entre PMDB e PT, que deseja colocar no órgão alguém do seu grupo’.


Por que o comando da Funasa ‘é indicação do PMDB da Câmara’? Isso está no regimento da Casa? Existe algum protocolo administrativo que o determine? O leitor permanece na ignorância. E ganharia muito se entendesse como se gestou esse ‘arrego’, para usar uma gíria carioca.


Não é que a consciência pública, por si só, impeça maracutaias. Mas ela pelo menos obriga os paredros a buscar novos esquemas. Práticas escusas sofrem com a visibilidade. É verdade que, quando são abertas ao público, outras já estão em curso, ainda longe do olhar coletivo. Mas pelo menos as primeiras poderão ter sido brecadas.


Uma estatal irresistível


Ao lado do nome de Furnas (um dos focos principais do mensalão, convém lembrar) está escrito: sob Lula, ‘Presidência é indicação do deputado Eduardo Cunha (RJ); Valdir Raupp (RO) e Romero Jucá (RR) indicam diretorias’. Sob Dilma, ‘Partido quer manter cargos e ampliar influência na empresa’. Furnas tem donatários, com nome e endereço político! Não seria a boa hora para se explicar como se chegou a esse extraordinário fenômeno? Que sortilégios atraem tanto interesse pela estatal?


Registre-se: no pé do quadro, a Folha informa que o PMDB quer também ‘avançar sobre os fundos de pensão, como Previ (Banco do Brasil) e Funcef (Caixa)’. E ainda: ‘Ao assumir Turismo, sigla deixou a presidência da Embratur com o PT, mas quer indicar diretorias como compensação pela perda de cargos nos Correios’.


Só um adiamento


Em editorial (‘A presidente enfrenta a tigrada’), o Estado de S.Paulo (5/1) descreve o mecanismo espúrio da chantagem e apóia a decisão de Dilma de interromper o processo de nomeações, mas adverte que o pega-pra-capar recomeçará depois da eleição das Mesas do Congresso, no início de fevereiro.


Na reportagem do Estado, o quadro dos apetites é diferente. Aparecem a Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), a Funasa, os Correios, a Embratur e a Conab. Entre as informações fornecidas estão os respectivos orçamentos e a importância de cada órgão. Por exemplo, SAS: ‘Tem o maior orçamento do Ministério da Saúde [R$ 45 bilhões] e está presente em todo o Brasil, o que dá uma grande visibilidade ao partido que a controla’. Correios: ‘Também está presente em todo o país. Tem contratos bilionários com empresas de transporte’. ‘Maior orçamento’, ‘contratos bilionários’. Fica subentendida a natureza do interesse pelas nomeações. Mas falta explicitação.


O jornal publica ainda uma análise detalhada dos fatos que provocaram a contrariedade do PMDB, dando alguns nomes aos bois, e menciona, além disso, a insatisfação do PDT. E ficaram fora do radar o PSB, o PR, o PP, o PCdoB…


Jornalismo não pode ser conformista


A forma adotada pelos dois jornais para descrever as manobras peemedebistas tem o mérito de chegar até esse ponto, deixando a cargo do leitor politizado tirar suas conclusões, mas tem também algo de conformista. O jornalismo não pode se contentar com esse grau de descrição. Precisa cavar mais fundo. Sem sensacionalismo: apenas recapitulando fatos que estão na crônica política e na crônica policial dos últimos anos.


Por imperativo político, a presidente Dilma terá de chegar a um acordo com o PMDB, que tem seu quinhão de representatividade conquistado nas urnas. Não se trata, portanto, de advogar uma rejeição do jogo político, e sim a melhoria de suas balizas. A cada avanço do processo democrático a sociedade brasileira eleva seus padrões de exigência. O todo-poderoso Severino Cavalcanti não foi derrubado a partir de um discurso de Fernando Gabeira no plenário da Câmara?


Sob pressão, políticos e autoridades terão que adaptar o gingado ao ritmo da música. Nada de muito glorioso: esses processos, em condições ‘normais’, são mesmo lentos.


A pressão pela mudança de métodos depende muito de uma atuação incisiva da imprensa, tanto mais quando não há nem fiapo de notícia sobre alguma crítica que a oposição tenha feito ao processo de loteamento da máquina pública.