Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Memórias sonolentas para eleições violentas

Nas eleições que correm, alguns veículos declararam seu apoio a um ou a outro candidato ao Planalto. Primeiro foi a revista CartaCapital, que afirmou sua preferência por Dilma Rousseff. O diário O Estado de S.Paulo, no domingo (26/9), manifestou-se favorável ao candidato tucano, José Serra.


Há um frisson em torno do tema. Mais que frisson. Os cabos eleitorais se excitam, exaltam-se, gritam de punhos cerrados, socando o ar. Acreditam que, com seus decibéis a mais, desmascaram as ‘mídias’ tendenciosas que, finalmente, deram nomes a seus próprios bois. Discursam com fúria justiceira.


E vã. Rigorosamente, ninguém deveria perder muito tempo com isso. Desde os tempos da máquina de escrever, ou mesmo antes, desde os tempos do Lívio Xavier, de Rui Barbosa, e mais longe ainda, desde as eras de Hipólito da Costa, jornais no Brasil e no mundo tomam partido num debate ou noutro, às vezes discretamente, outras vezes com alarde. Também em eleições, claro. Há diários que cerram fileiras com um partido e não nominam candidatos. Outros, menos reservados, personalizam a questão e pedem voto num sujeito de carne, osso, nome e sobrenome. O que não contraria em nada a tradição jornalística. Desde que não contamine a cobertura honesta dos fatos, um editorial de apoio a uma campanha (cívica, eleitoral, militar, desportiva, o que for) não mata a credibilidade de ninguém. Antes o contrário: declarar abertamente a preferência partidária, ao menos nas condições normais de temperatura e pressão, é uma forma de jogar mais limpo com o leitor.


Só o que é preciso é saber que não estamos diante de um imperativo incontornável. A imprensa conhece mil maneiras de se posicionar – ou de não se posicionar. Mil maneiras e mais outras mil. Só é preciso saber que os jornais têm o direito de declarar ou de não declarar em quem os seus dirigentes pretendem votar, assim como têm também o direito de não declarar coisa alguma. A declaração de voto não é obrigatória, assim como não é errada. Um diário pode, com toda a legitimidade, preferir não tomar partido – ainda que sua cobertura sugira uma inclinação para esse lado ou aquele lado da disputa. Se essa inclinação ferir ou frustrar a justa expectativa dos leitores, o problema é desse jornal. Ele terá que pagar o preço pelas forçadas de mão.


Não há neutralidade na imprensa, já se sabe desde a invenção da escrita. O que pode haver, se quisermos ser otimistas, é um pouco de objetividade (no sentido de fazer com que o relato decorra mais do objeto que é a pauta e menos do sujeito que a escreve). O que pode haver é boa fé. O que pode haver é transparência. Agora: declarar voto não é sinônimo automático de transparência. Assim como é possível mentir dizendo só (fragmentos d’) a verdade (‘a verdade é seu dom de iludir’), é possível ser opaco e traiçoeiro declarando voto a todo momento.


Nessa matéria, vale repetir, não há receita universal. A única receita é o respeito pela autonomia de cada um e pelo público leitor. Cada órgão jornalístico é autônomo para decidir sobre o modo de se conduzir – e a instituição da imprensa será tanto mais saudável quanto mais diversidade comportar. No mais, cada um que resolva o pacto que quer firmar – e respeitar – com o seu público. É assim que funciona. Aliás, é assim que funciona.


Essa confusão dos diabos


Bem, mas, se é assim, por que o frisson inútil?


Em parte, porque as paixões partidárias, na falta de outras, apimentam o ambiente, e o pessoal se diverte. É mais ou menos como ir brigar num fim de baile na cidade de Igarapava, às três da manhã. Falta de sono. Falta de coisa melhor para fazer. Há uma certa sanha hormonal nessa história, embora as ideologias não se saibam porosas aos hormônios. O sujeito se inflama – e com isso experimenta um gozo que julga ser secreto. O outro fala em golpismo e se vê virando estátua no museu da revolução. Um terceiro se dá ares de indignação santificada, e surge aquele que se pretende imolar nas rotativas. A coisa toda é imaginariamente sangrenta, mas, no fundo, a coisa toda é muito mais simples. É natural, quero dizer, essa gritaria cheia de afetações fundamentalistas de um lado a outro, essa teatralização tanto dos que vêem atentado contra a democracia numa manchete e como dos que vêem golpe de Estado nos desaforos que o presidente da República pronuncia – tudo isso é natural, ainda que artificial. É do jogo, ainda que possa ferir a regra do jogo. Está na conta, ainda que subtraia quando prometa somar. É previsível, ainda que nos pregue sustos.


As ondas de raiva irrompem porque a polarização foi longe demais. Nem tão longe como na Venezuela, mas foi longe demais entre nós. Falta-nos serenidade. Tanto nos falta que, nesse momento, quem defende a serenidade passa por demagogo. Eu, como partidário convicto do movimento minoritário pela serenidade, ainda que demagógico, insisto: nada de novo sob o sol.


As lembranças que nos escapam


Não estou bem certo se já disse isso nos parágrafos anteriores, mas já faz muito tempo que jornais tomam partido em eleições. Deveríamos puxar pela memória, se é que temos alguma, e deveríamos pegar mais leve.


Eu me lembro que, em 2000, o mesmo Estadão que agora vai de Serra, foi de Marta Suplicy quando ela disputou a prefeitura de São Paulo contra Paulo Maluf. O meu ponto forte não é a memória – é o esquecimento. Não obstante, eu me lembro bem desse editorial, e fui buscá-lo em arquivos que estão aí à disposição dos mortais comuns. Era um bom editorial, aquele de dez anos atrás. Vamos a ele, ou, melhor, retornemos a ele. Ou, melhor ainda, retornemos a algumas passagens dele. Foi publicado na edição de 3 de outubro de 2000 de O Estado de S. Paulo.




‘Um balanço positivo


‘A ida de Paulo Maluf ao segundo turno da eleição para prefeito de São Paulo – por uma diferença de 7.691 sufrágios, em mais de 5,5 milhões de votos depositados – é apenas uma ofuscante exceção nos resultados que – tomados em conjunto – podem ser considerados auspiciosos do pleito de domingo.


‘O primeiro deles foi o pleno êxito da informatização do processo em todo o território eleitoral. Trata-se de uma verdadeira proeza, dadas as dimensões e a diversidade do País e o baixo índice de escolaridade da maioria do eleitorado brasileiro. Graças à votação e à apuração eletrônica, a fraude eleitoral foi, afinal, definitivamente riscada do mapa político brasileiro. Esse, literalmente, é um acontecimento histórico.


‘Auspiciosos também podem ser considerados os resultados apurados pelo TSE nos médios e grandes municípios, nos quais se concentra a grande maioria do eleitorado, na medida em que não deixam qualquer dúvida sobre o amadurecimento da sociedade brasileira. Embora tivesse todos os motivos para fazê-lo, o povo não deu as costas à política, nem votou a esmo, apenas por obrigação, como se os candidatos fossem todos ‘farinha do mesmo saco’. Dando uma demonstração de discernimento que desmente os eternos céticos, para os quais ‘o povo não sabe votar’, os eleitores escolheram candidatos e partidos segundo critérios pragmáticos, estritamente vinculados à aspiração de ver melhoradas as condições de vida em suas cidades.


(…)


‘Se o PT colheu bons resultados nos municípios com mais de 200 mil eleitores, onde haverá segundo turno, é exatamente porque, em vez de ‘federalizar’ o pleito municipal, os candidatos petistas colocaram a ética no topo de suas propostas eleitorais. Outros partidos também fizeram praça dos compromissos com a moralidade administrativa, mas o PT teve a respaldá-lo uma inequívoca tradição de combate às maracutaias com o dinheiro do contribuinte e de honestidade no exercício de cargos executivos.


‘Mais de 2,1 milhões de paulistanos deram à petista Marta Suplicy 38% dos votos válidos porque ela e seu partido passaram a ser percebidos como a encarnação do antimalufismo. Outro não foi o motivo pelo qual o PT acaba de conquistar 16 cadeiras na Câmara Municipal de São Paulo (ante 10 há quatro anos), enquanto o PPB de Maluf, que elegera 19 vereadores em 1996, agora não foi além de 5. É pouco provável, porém, que o PT tivesse se saído como se saiu desta vez, pelo País afora, se o seu empenho em defesa da ética no governo continuasse a coexistir com o sectarismo e o rancor radical que dele sempre afugentaram parcelas ponderáveis do eleitorado.


‘O PT vitorioso anteontem, a rigor, é ‘o PT que diz sim’: ao menos na esfera municipal, seus candidatos procuraram abrir-se ao diálogo, prometeram sepultar preconceitos, trataram de apresentar soluções inovadoras e, ao falar em ‘austeridade’, referiam-se não apenas ao manejo honesto dos recursos, mas também à administração responsável das finanças públicas –contra o que se insurgem, em escala nacional, os interesses corporativos cuja expressão política por excelência ainda é o próprio PT.


‘Seja como for, o ‘centro civilizado’ de São Paulo, para quem o PT raramente é a primeira escolha eleitoral, só pode dar o seu voto a Marta Suplicy no segundo turno, ainda que nada haja em seu currículo que garanta sua competência como administradora da coisa pública. Entre ela e Maluf, o eleitor preocupado com a moralização dos costumes políticos não pode hesitar. 


(…)


‘São Paulo espera do governador Mario Covas e do PSDB a grandeza de uma manifestação imediata em apoio da candidata contra quem o político ‘nefasto’ – a expressão é de Marta Suplicy – recorrerá a tudo nesta segunda campanha.’


Além de apoio, voto de confiança


Foi um editorial que marcou meu precaríssimo reservatório de lembranças. Um editorial favorável ao PT. Favorável à defesa da bandeira da ética na política, àquela época encarnada no PT. E a boa vontade dos editorialistas do jornal voltou à carga logo após o segundo turno, no dia 1º de novembro de 2000, num outro texto marcante.




‘Crédito de confiança


‘Se, por uma fatalidade, o candidato Paulo Maluf – que representa tudo o que este jornal repudia em matéria de costumes políticos e administrativos – tivesse vencido a eleição para prefeito de São Paulo, ainda assim o Estado iria torcer para que ele fizesse um bom governo, apesar dos justificados receios de que essa esperança dificilmente se concretizaria. Isso porque, como já assinalamos outras vezes neste espaço, os princípios pelos quais se orienta a linha do jornal excluem qualquer desejo mórbido de que fracassem os governantes dos quais diverge, descalabro. Se assim é, só cabe fazer votos para que se confirmem as expectativas favoráveis dos eleitores dos novos prefeitos do PT, não obstante as profundas diferenças ideológicas que sempre nos separaram do partido.


(…)


‘Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, (…), respondendo a uma pergunta sobre os limites das negociações que manterá com os vereadores paulistanos disse: ‘Não farei nada que não possa sair na imprensa.’ Pode ser – apenas pode ser – que algo de muito novo esteja começando em São Paulo. A nova prefeita de São Paulo vem mostrando boas atitudes.’


(Engraçado como o tempo passa e ao mesmo tempo não passa. Enquanto escrevo estas maltraçadas, vejo Maluf, ele mesmo, no horário eleitoral: ‘Bias abigas e beus abigos’. Nada de novo sob o sol.)


Voltando ao ano 2000, pelo que me lembro, naquele tempo, não se falava em ‘golpe’ – embora, como avisei há pouco, se não me falha a memória, a memória não seja exatamente o meu forte. O jornal deu sua opinião. Cravou sua posição. Apoiou uma candidata, apoiou-a resolutamente. Também não me recordo de registros de que tenha sido acusado, por isso, de distorcer seu noticiário. Os tempos mudam. As pessoas mudam. O humano esquece. Eu é que, justamente por não ser bom de memória, às vezes me esqueço de esquecer.


Um post scriptum em sentido inverso


As investidas de Lula contra os jornais foram tão contundentes, tão perfuro-cortantes, que roubaram a cena. Roubaram, digo, com todo o respeito. Por terem roubado (com todo o respeito) a cena, saiu de cena a comparação entre Dilma e Serra, que são os dois concorrentes aptos a receber votos. Mas se a nossa memória nos lembrasse de que são eles, Dilma e Serra, que disputam o voto, nós iríamos comparar um com o outro, também no que se refere ao trato com a imprensa.


O resultado da comparação seria engraçado. Muito se acusa a candidata Dilma Rousseff de querer censurar jornalistas, mas, no plano dos fatos, é José Serra quem briga com repórteres. Ele já interpelou agressivamente jornalistas da TV Brasil, alegando que as perguntas eram orientadas eleitoralmente, como no episódio de falta d’água em São Paulo (foi numa terça-feira, 9 de fevereiro de 2010). Antes e depois disso, foi protagonista de outros atritos.


Em setembro, no dia 15, uma quarta-feira, quem apanhou foi a jornalista Márcia Peltier, na gravação do programa Jogo do Poder, da CNT, se a memória não me sabota. Ela indagava sobre a quebra do sigilo na receita e sobre o mau desempenho do tucano nas pesquisas, e o tucano perdeu as estribeiras. Conforme relato do repórter Marcio Allemand, no site de O Globo, Serra afirmou que estavam ‘perdendo tempo’ ali com a repetição de ‘argumentos do PT’ que são ‘fajutos’. Houve uma interrupção na gravação, que foi retomada em seguida, depois de breve diálogo, sem holofotes nem câmeras.


Apenas para que fique anotado: em matéria de fustigar a imprensa, o presidente da República segue imbatível, mas, quando se compara o candidato do PSDB com a candidata do PT, Serra dá sinais de ser bem menos paciente com entrevistadores que o contrariem. No entanto, é ela quem leva a fama. Ah, sim, a memória me avisa que foi o programa de governo dela, e não o dele, que, nas primeiras versões, atacava o jornalismo. Mas depois o trecho de media criticism do programa de Dilma foi deixado de lado. Foi esquecido. Alguém se lembra?

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Jornalista, professor da ECA-USP