Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Mídia argentina no bicentenário da revolução

A Argentina mudou muito, é o que dizem os argentinos neste momento. Vivendo sua segunda crise em menos de uma década, com problemas de inflação e travando uma luta constante contra a possibilidade de uma estagnação econômica, o país está prestes a celebrar o aniversário de bicentenário da Revolução de Maio, em 25 de maio. A mídia está cobrindo o momento histórico, mas também é um personagem central dentro do contexto.


É impossível separar a mídia argentina da política e da economia do país. O que significa que, para entender um, é preciso conhecer o outro.


O plano de estabilização econômica, que custou tanto suor ao Brasil nos últimos anos, definitivamente não vingou na Argentina: a inflação é um grande problema – houve um aumento de 12% nos alimentos apenas nos três primeiros meses do ano, segundo o Indec (Instituto Nacional de Estadistica y Censos), chegando a ser ainda maior quando medida por institutos particulares – e pivô de constantes questionamentos da mídia em relação ao governo de Cristina Kirchner, assim como os artifícios que usa para combater o fantasma da estagnação econômica.


Os meios são os protagonistas


A comemoração do bicentenário aparece nesse palco como um evento simbolicamente forte e oportuno para impulsionar um revisionismo histórico, avaliar o passado e também traçar metas para o futuro. Entretanto, a data comemorativa não é a principal manchete dos jornais nos últimos tempos.


O assunto está presente em alguns artigos críticos de opinião, de maneira espaçada, e em publicações sobre a história argentina, em fascículos ou livros editados por alguns jornais aos domingos – como acontece com o Clarín – e, de maneira mais forte, nos cadernos de cultura, refletindo a agenda cultural que preparou o governo, como a reabertura do Teatro Colón – fechado para reformas há dois anos e ansiosamente aguardada pelos entusiastas da cultura –, a criação da Casa do Bicentenário e uma programação recheada de eventos culturais durante o mês de maio.


Mas a verdade é que o bicentenário como um debate político e econômico está completamente à sombra da cobertura diária dos jornais em relação a esses assuntos. E quando é lembrado, se faz presente para fazer analogias ao comportamento do atual governo. Nesse sentido, os jornais La Nación, Clarín, Página 12 e Perfil não atuam apenas como observadores, mas, mais do que nunca, como atores dentro desse contexto.


Edgardo Zunino, secretário de redação de Perfil e autor do livro Patria o Medios, que trata da relação da política argentina com os meios de comunicação, diz que, ‘o tema dos meios está muito atrelado ao que se passa na política. Pela primeira vez, na Argentina, os meios se tornaram um tema de Estado. O governo de Kirchner decidiu enfrentar as grandes corporações midiáticas como maneira de buscar a construção de um poder perdurável no tempo. Os meios estão no grande momento de serem protagonistas. E quando a mídia é o protagonista, se acaba o jornalismo’.


Uma visão nostálgica e conservadora


Ser um dos atores principais na briga não tem permitido à mídia local fazer a cobertura jornalística de maneira imparcial. Segundo Zunino, isso acontece porque a oposição ao peronismo de Cristina é ineficiente e não consegue exercer seu papel. A mídia, então, tem ocupado a posição de opositor político – de acordo com os interesses defendidos por cada um dos jornais, claro. ‘A agenda dos meios são os meios e sua disputa com o poder político, hoje. Então, toda a análise sobre a realidade da política, a economia e a atualidade está envolta por isso. Estamos olhando para o umbigo todo o tempo’, afirma o jornalista de Perfil.


Para entender como cada um dos diários argentinos está cobrindo o bicentenário e seu entorno, é necessário conhecer um pouco de suas histórias e a bandeira que levantam na pelea que travam diariamente com o governo.


La Nación é o mais antigo dos jornais argentinos em circulação, o mais próximo de um feito histórico (foi fundado pelo ex-presidente Bartolomé Mitre) e tem um enfoque oficial – no sentido histórico do termo – e conservador ao tocar no assunto. Atualmente, faz oposição ao governo e está muito atrelado ao pensamento dos produtores rurais. ‘É uma visão agropecuária’, comenta a jornalista Luciana Peker, do Pagina 12, afirmando que, ‘La Nación faz quase um manual de história e por isso tem um valor muito forte, pois é o diário que reflete há mais tempo a história da Argentina’.


Já o historiador Felipe Pigna, que realiza um grande trabalho de divulgação da história argentina a partir dos meios de informação do país, e escreve semanalmente na revista dominical do Clarín, tem uma visão mais crítica em relação à linha editorial assumida pelo jornal: ‘É uma visão nostálgica e a reivindica dessa maneira. É conservador e fala do centenário, por exemplo, como algo elogioso do que foi o país, que era a quinta potência mundial, um país rico, mas deixando de lado muitas coisas importantes.’


Os filhos adotados da dona do Clarín


O Clarín já esteve alinhado com o governo Kirchner quando Néstor – marido da atual presidente, Cristina Kirchner – estava no poder e mudou de time quando os negócios que envolviam os interesses comerciais da dona do jornal e os do governo deixaram de caminhar bem das pernas. O periódico sustenta que o desenvolvimento do país deve ser uma meta e nesse aspecto está atrelado aos interesses do empresariado argentino, embora com uma visão nacionalista do processo.


Luciana Peker, do Pagina 12, classifica a postura do jornal como ‘mafiosa’ porque ‘começam contando notícias ruins sobre o governo e se têm negócios contam boas notícias sobre o governo. Essa é a postura mais mafiosa e mais antiética’. E justifica que sua análise se deve ao fato de que jornal é o mais importante da Argentina, principal formador de opinião e, por isso mesmo, deveria ter mais cuidados com sua linha editorial.


É importante, no caso específico do Clarín, expor o conflito que já é público na Argentina e envolve a dona do jornal, Ernestina Herrera de Noble, e seus dois filhos adotados durante a ditadura militar do país. Ambos, supostamente, são filhos de desaparecidos políticos. O fenômeno da adoção de filhos de desaparecidos políticos emociona a Argentina e recentemente o governo de Cristina Kirchner aprovou uma lei que pode obrigar supostos filhos de desaparecidos a fornecer amostras de DNA pela investigação de um crime que não prescreve.


Os filhos da dona do Clarín, Marcela e Felipe Noble, enviaram carta aberta aos principais jornais do país declarando que não desejam fazer o teste por se tratar de uma chantagem com sua mãe, que pode ser presa se for descoberto que ela adotou os filhos de forma ilegítima.


Espetáculos culturais


Entretanto, no que toca ao bicentenário, o Clarín optou por uma cobertura mais histórica e resolveu lançar uma série de livros a respeito dos grandes nomes históricos do país, lançados semanalmente – e vai publicar uma edição especial em 25 de maio.


O jornal Pagina 12 já publica matérias sobre a data há mais de um ano e, embora, oficialista, produz uma cobertura mais progressista com ênfase em questões mais humanas e menos macroeconômicas.


Perfil está começando a falar do bicentenário agora e, ao que parece, com mais liberdade que alguns outros jornais, já que não se vê em posição de enfrentamento com o governo, como os demais. Propõe um debate nacionalista no sentido de uma agenda que gira em torno de temas como saúde, educação e o questionamento do que pode ser feito para melhorar o país, independente de quem está no comando.


A questão da agenda atabalhoada dos meios também foi lembrada pelos entrevistados como um elemento que dificulta um olhar sobre o passado e um planejamento mais amplo e crítico para abordar profundamente o tema nos jornais. O secretário de redação de La Nación, Pablo Sirvén, observa que ‘a imprensa tem uma dinâmica informativa muito acelerada e é por ela que se pauta para informar’.


O governo Kirchner tem se esforçado para garantir um bom clima em 25 de maio, inclusive com medidas pouco ortodoxas, como o decreto de um feriado na véspera, uma segunda-feira, o que vai provocar um feriadão que, no geral, agrada a gregos e troianos e, ainda por cima, impulsiona a atividade econômica do turismo.


Mas também encontra outras maneiras de celebrar a data, como a edição de um Diário do Bicentenário, em que cada exemplar vai falar sobre um ano (desde 1810 até nossos dias) e sairá em maio; o lançamento de um fascículo lembrando o pensamento de personalidades argentinas em diversas esferas, de distribuição gratuita; e também organiza um desfile que vai mostrar diferentes momentos históricos da Argentina. E na Avenida 9 de Julio, a principal de Buenos Aires, haverá espetáculos culturais das províncias.


Oportunidade para pensar o futuro


Na visão de Edgardo Zunino, o bicentenário é usado pelos mandatários em geral como uma maneira de se associarem à história e se promoverem como candidatos para as eleições presidenciais de 2011.


Nenhum dos jornalistas que falaram ao Observatório acredita que mudanças sérias possam surgir a partir da data, mas ressaltam a importância de uma reflexão a partir do dia histórico.


Pablo Sivén, do La Nación, avalia que ‘estamos num momento muito áspero de todos os lados, governo, oposição e mídia também. Há muitas instituições que estão em carne viva porque temos tido muitos enfrentamentos. É como se falássemos de uma grande família que tem muitos problemas e que está prestes a celebrar o Natal – e que isso pudesse mudar a situação. O que se espera é que ao menos tenhamos a festa em paz. Não acho que a data vá mudar algo’. Sivén diz ainda que há muita intransigência em todos os envolvidos para permitir um diálogo e fazer as coisas funcionarem. ‘Esse é o cenário em que estamos transitando e não acredito que seja possível comemorar muito. Seria até um pouco hipócrita, não?’


Luciana Peker lembra que sempre se valorizou a Argentina por sua capacidade de reação, de sair à rua, mas comenta que a população não é autocrítica. ‘Somos críticos para os outros. Poderíamos começar a pensar se somos solidários no dia-a-dia. Além de pedir segurança, é preciso tentar diminuir a desigualdade, e assim o desemprego e a criminalidade.’


Todos concordam que é um bom momento para se posicionar sobre o futuro, pensar modelos, estratégias, metas e animar o espírito nacionalista. ‘Creio que se o governo se preocupasse mais com o que está realizando e ignorasse a mídia andaria muito melhor. E as pessoas acabariam se dando conta da verdade’, diz o historiador Felipe Pigna. E cita o exemplo de Juan Domingo Perón, que era constantemente criticado pela imprensa, mas tinha a população a seu favor. ‘Da mesma maneira que se dão conta de que os números [de inflação] do Indec não estão corretos, também se darão conta se o governo está fazendo obras e melhorando as escolas’, afirma.


As festividades do bicentenário podem ser uma boa oportunidade para a Argentina pensar o futuro e não se deixar cair numa situação de paralisia em que a energia não é gasta para governar, mas para se defender.

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Jornalista