Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Molière em Brasília

Durou dois dias a crise institucional provocada pela visita do ex-presidente Lula ao escritório do agora advogado Nelson Jobim e a conversa que lá teria mantido com o ministro do STF, Gilmar Mendes. O incêndio parecia de grandes proporções e logo foi abafado, como geralmente acontece neste recanto do mundo tão avesso a situações intensas e purgadoras.

O encontro ocorreu em 26 de abril, foi noticiado precisamente um mês depois, ganhou as manchetes quando o magistrado confirmou que havia sido sutilmente intimidado pelo ex-presidente, que lhe mostrou os inconvenientes de julgar o escândalo do mensalão antes das eleições e, em seguida, insinuado que Mendes poderia ser enredado na CPI do Escândalo Cachoeira em função de suposta relação com o quase ex-senador Demóstenes Torres.

Na condição de ex-presidente, livre de mandatos e ritos, Lula da Silva pode encontrar-se com quem queira, é um cidadão como outro qualquer. Mas tem a obrigação de respeitar convenções, conveniências e composturas relacionadas com o cargo que ocupou: ir ao escritório de um advogado para encontrar-se com um integrante da corte suprema é decididamente impróprio para um ex-chefe de Estado.

Piloto de bulldozer

Igualmente impróprio foi o comportamento do anfitrião, Nelson Jobim, promotor do encontro e que, diante da gritante divergência de versões sobre o que foi falado, adotou tão desastrada discrição que só agravou as suspeitas sobre o real objetivo do tête-à-tête.

A conhecida vaidade de Gilmar Mendes toldou a sua perspicácia e levou-o a aceitar o convite de um político sagaz, persistente e que assumiu publicamente o compromisso de desmantelar “a farsa do mensalão”. Esperava que Lula lhe pedisse conselhos sobre a crise europeia?

O presidente Lula é uma figura extraordinária, dono de uma fulgurante trajetória, mas imoderado nas percepções sobre a trajetória dos outros. Acha que os deuses lhe ofereceram prendas que recusam aos demais mortais. Sente-se infalível, pode tudo.

Tem errado muito: certo de que é capaz de eleger um poste, dividiu seus companheiros de partido e está queimando um quadro de valor, seu ex-ministro Fernando Haddad, como candidato a prefeitura de São Paulo. Confiando na boa estrela, forçou a sua base no Congresso a criar uma CPI para investigar Carlos Cachoeira e suas conexões com a oposição – agora a investigada será a empreiteira Delta, maior beneficiária do PAC. Seguro da sua competência ao volante de bulldozers, anunciou aos quatro ventos que depois de eleger a sucessora iria desmascarar a farsa do mensalão. Errou crassamente ao anunciar que iria competir com a suprema corte e, o pior – começou a manobrar para adiar o julgamento no STF.

Todos mal

O encontro com Gilmar Mendes sob o patrocínio de Nelson Jobim não foi um encontro “republicano”, foi uma tríplice exibição de manhas. Nenhum dos magníficos personagens é sonso, mas pretendiam inocentemente passar por tal. Não pressentiram a presença de Molière, genial criador de Tartufo, pai do tartufismo, denunciador de fingimentos religiosos e políticos.

Os três contavam com o sigilo das portas trancadas e uma tirada inesquecível do comediógrafo francês: “Não há pecado algum quando se peca em silêncio”.

Gilmar Mendes abriu o bico e todos ficaram mal no filme. Ou na peça.