Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O Dia merece uma telenovela

Se Orson Welles ressuscitasse para fazer um remake de Cidadão Kane poderia contar a meteórica e melancólica história de um popularíssimo jornal carioca chamado O Dia. Poderia até render uma telenovela tantos são os lances e trepidações ao longo dos seus 59 anos de existência. Os novos capítulos serão gravados em Lisboa, Luanda, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.


O mais recente episódio foi noticiado com destaque na Sexta-Feira Santa (2/4) pelos principais jornais do país: o lendário e vibrante O Dia foi comprado por um grupo financeiro português chamado Ongoing Media Group, que pretende se transformar no mais importante pólo midiático do mundo lusófono (curiosamente, todas as subsidiárias do grupo ostentam nomes americanos).


Tudo começa em 1951, quando o populista Adhemar de Barros resolveu estabelecer uma cabeça de ponte no Rio de Janeiro para servir de sustentação a uma possível candidatura à presidência da República. Convocou um jovem político local, Antônio de Pádua Chagas Freitas, e com ele criou um matutino popular, O Dia, que em seguida deu uma cria, o vespertino A Notícia.


Os sonhos de Adhemar se desfizeram em 1955 com a vitória de Juscelino Kubitschek, logo sucedido por Jânio Quadros, seu arquiinimigo. O habilíssimo Chagas Freitas passou a perna em Adhemar e ficou com a empresa. Não era jornalista, mas tinha tino: investiu em máquinas, organizou a empresa, lançou alguns talentos (Miro Teixeira foi um deles) e fez dos dois jornais campeões de venda em banca.


Pretendentes vários


Corte, nova seqüência: em cena Ary de Carvalho, jovem e ambicioso jornalista de Birigui, interior de São Paulo, que em 1955 vai trabalhar na Última Hora paulista. Samuel Wainer, sempre à espreita de novos talentos, o empurra rapidamente da reportagem para a secretaria da Redação e desta para a direção. Em 1961, Ary está dirigindo a Última Hora do Paraná e no ano seguinte a influente edição gaúcha.


O golpe militar de 31 de março de 1964 fecha todos os jornais da rede UH e o próprio Samuel Wainer vê-se obrigado a se asilar na embaixada do México. Ary de Carvalho não perde tempo: na visita que faz ao asilado Wainer se oferece para comprar os ativos e o passivo da Última Hora gaúcha. Wainer o expulsa da embaixada. Rápido no gatilho, Ary volta a Porto Alegre e já no dia 4 de maio daquele ano lança nas bancas o tablóide Zero Hora (nome de uma das seções mais populares do jornal de Wainer).


Em 1970 vende a Zero Hora aos irmãos Sirotsky que a transformam no carro-chefe da RBS (Rede Brasil Sul, até então focada na mídia eletrônica). Com o dinheiro, Ary compra o almejado título de Wainer. Não podia dar certo: queria transformá-lo num jornal de apoio ao esquema militar contrariando a sua longa tradição trabalhista. Neste meio tempo tornou-se muito amigo do magnata falido Ronald Levinsohn, dono da Delfin, muito próximo do esquema do general Golbery do Couto e Silva.


Em 1983, já no ocaso da ditadura militar, Ary de Carvalho aproxima-se de Chagas Freitas (arrasado pela morte do primogênito, jornalista) e convence o velho cacique político e ex-governador a vender por quantia irrisória os valiosos títulos e o formidável acervo da empresa. Os demais herdeiros tentam embargar o negócio pela via judicial, alegando que Chagas estava enfermo e incapacitado mentalmente. Em outubro de 1997, a Justiça considera válida a operação.


A Associação Nacional dos Jornais (ANJ) recebeu o novo associado de braços abertos, esquecendo que o humilhado Chagas Freitas dirigiu ao longo de duas décadas o Sindicato de Empresas de Jornalismo do Rio de Janeiro, antecessor da ANJ.


Em 2003, aos 69 anos, morre Ary de Carvalho vitimado por um AVC. A viúva e as filhas continuam tocando a empresa. Desentenderam-se e resolvem passá-la adiante. Recusaram vários pretendentes (entre eles o comprador de cadáveres Nelson Tanure e o bispo Edir Macedo) e acabaram fechando negócio por 75 milhões de dólares com o grupo financeiro lusitano Ongoing Media Group.


Operação investigada


Os portugueses têm apenas um produto jornalístico, o Diário Económico, tablóide ligeiro de economia & negócios (mais negócios e menos economia) cuja maior façanha é ser impresso em papel cor de salmão, tal como o britânico Financial Times. Aqui lançaram recentemente o Brasil Econômico, também em papel-salmão, para ocupar o espaço deixado pela falecida Gazeta Mercantil. Alegam uma circulação de 20 mil exemplares, ainda não auditada. Nos meios especializados estima-se que não vendem a metade.


As demais operações do grupo são eminentemente financeiras ou bolsistas: compram, vendem, trocam posições acionárias em empresas de mídia e telefonia. Já estiveram envolvidos em compras hostis (hostile take-overs), o que não chega a constituir ilícito, mas revela uma vocação empresarial diferenciada.


Uma dessas operações visava o controle do grupo Sonae, cujo acionista principal e publisher é Francisco Pinto Balsemão, patriarca da moderna imprensa portuguesa. Balsemão é padrinho de Nuno Vasconcellos, mas o capo da Ongoing preferiu esquecer a amizade do seu falecido pai com Balsemão – o que também não é ilícito, mera questão de estilo.


Outra operação barra-pesada do grupo Ongoing relaciona-se com a compra da TVI portuguesa pela Portugal Telecom, que está sendo investigada por uma comissão parlamentar de inquérito na Assembléia da República. A jogada foi transformada em escândalo e deixou muito mal o primeiro-ministro José Sócrates, um socialista visivelmente cansado de utopias, agora seduzido por projetos de poder pessoal.


Novela longa


O noticiário dos jornalões brasileiros sobre a compra de O Dia pelo grupo Ongoing parecia ter sido produzido por uma assessoria de comunicação: burocrático, acrítico, incompleto. Apenas o Estado de S.Paulo arriscou-se a lembrar, de passagem, a fascinação do grupo português pelo talento jornalístico de José Dirceu.


Quem conseguiu sobrepor-se ao release publicado pela imprensa brasileira foi a CartaCapital com uma matéria produzida em Lisboa, evidentemente entusiasmada com a entrada em grande estilo do grupo português no Brasil (edição de 21/4, págs. 50-53). O inspirado título camoniano (‘Naus supersônicas’) revela uma inovadora técnica jornalística de contar uma história com o avesso dos fatos. Detalhe: nem o semanário nem os diários conseguiram esclarecer a participação angolana no projeto.


Não faltará ocasião: o retorno do Cidadão Kane ainda não está preparado. A novela O Dia tem um formidável estoque de ironias a ser revelado.


 


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