Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O Jesus de Mel Gibson

Foi o latim eclesiástico e imperial, de uma Igreja triunfante, o principal responsável: no português, os sofrimentos impostos a Jesus nos dois últimos dias de sua vida foram designado como ‘Paixão’. Como se sabe, os sentidos predominantes de paixão em nossa língua são outros, ainda que o radical desta palavra esteja presente em outras indicando sinônimos de dor ou de quem sofre uma ação, como no caso da voz passiva.

Segundo José Pedro Machado, o primeiro registro de paixão no português foi feito por um rei, Dom Afonso 10º, o Sábio, no século 13:

‘Deus, meu Senhor,/ Esta paixon sofro por teu amor’.

Paixão foi vocábulo escrito durante séculos de outras formas: paixom, paixam, passiom etc. Num manuscrito medieval, Crónica da Ordem dos Frades Menores, já no século 15, que referia textos do século 13, aparece pela primeira vez passiom com o sentido que depois se consolidou para referir os eventos que envolveram a crucificação: ‘Passiom de Nosso Senhor Jesu Christo’.

Injúria adicional

Outras línguas sofreram influência semelhante, por outros caminhos, e este é também o caso do inglês, que cunhou ‘ passion’ para designar a mesma coisa até chegar ao título do polêmico filme de Mel Gibson, The Passion of Jesus Christ, em várias outras línguas com título reduzido, que exclui o nome de quem a sofreu, de que são exemplos Die Passion, em alemão, e La Passione, em italiano.

Entre tantas questões, o filme remete a um tema preferencial: a língua em que a paixão é narrada e vivida. O filme é falado em aramaico. O diretor não queria nem legendas. E não sem razão. Do jeito que muitas vezes são feitas as traduções no Brasil, dado que as tramas são previamente conhecidas, ficaríamos livres de tropeços escandalosos. Em muitos filmes legendados, anel e campainha são a mesma coisa, sem contar que conhecidos palavrões da língua inglesa são resumidos para ‘maldito’, ‘porcaria’ e outros eufemismos irritantes.

Ah, sim, e quem manda em inglês, nos filmes, o interlocutor para tomar na principal função excretora do nosso corpo, dependendo do tradutor, remete o próximo para outro destino. Este, porém, não é um grande problema: afinal, o sacro já foi chamado de inferno e há resquícios de tal denominação na expressão ‘c. do Judas’. Pobre Judas! Além de ser o mais célebre suicida de todos os tempos, restou-lhe ainda uma escatológica injúria adicional, entre tantas outras.

Espiral de confusões

A questão da língua é pertinente neste filme por várias razões. A principal delas é que o aramaico, o latim, o grego e o hebraico, entre outras línguas, tinham circulação na Palestina ocupada pelos romanos naquele período histórico.

Quando Pilatos, o governador da Judéia, interrogou Jesus, terá feito as perguntas em latim, em grego ou em aramaico? Hollywood já cometeu sérios deslizes em outros filmes. Num deles, Quo Vadis, baseado em romance homônimo do escritor polonês Henryk Sienkiewicz, dá-se estranho diálogo: ‘Quo vadis, Domine?’, pergunta São Pedro a Jesus ressuscitado. Pergunta em latim, mas ouve a resposta em inglês: ‘I’m going to Rome’.

Pedro perguntou a Jesus, que lhe apareceu quando o apóstolo fugia das perseguições de Nero, aonde ele ia. E ouviu que voltava a Roma para ser crucificado de novo, desta vez no lugar daquele a quem dera as chaves e a quem constituíra como pedra angular da nova igreja que fundara.

A alternativa da censura vem sendo considerada nas reflexões prévias sobre o filme de Mel Gibson. Ai, meu Deus, sempre a censura! Como é grande a tentação entre nós de resolver as polêmicas com esta arma que costuma disparar seus tiros pela culatra! Mel Gibson, concorde-se ou não com ele, investiu milhões de dólares em seu filme, mas cópias piratas de sua produção podem ser adquiridas em muitos lugares, inclusive em São Paulo ou baixadas pela internet. Bem Brasil, onde algumas leis não pegam de jeito nenhum, muito menos a de direitos autorais – mas também esta questão é muito complexa.

Calar a boca dos discordantes, vetar seus artigos, proibir seus livros, filmes, músicas, letras, canções etc. são ações que inauguram uma espiral de confusões. O caminho acertado no campo da democracia e do estado de direito é aquele, certamente mais complexo, mas de efeitos educativos, de recorrer a um dos três poderes que são pilares da República – o Judiciário – e aguardar a decisão do Supremo Tribunal Federal, se for o caso. E este foi o caso recente do editor neonazista Sigfried Elwanger, cuja apologia do anti-semitismo foi sepultada em sentença irrecorrível.

Proibido proibir

Mel Gibson fez um filme anti-semita? Pode ser. Antes dele a Igreja nos ensinou a rezar muitas orações em que os judeus eram caluniados. Apenas depois do Concílio Vaticano II é que essas calúnias deixaram de ser, não apenas proferidas, mas também não foram mais ensinadas em sacristias e escolas católicas.

O caminho mais recomendado é outro: a discussão do filme. Vá assistir ao filme quem queira, mas que ninguém nos imponha sua única leitura. Mel Gibson já cedeu antes da estréia. Retirou a invocação ‘que seu sangue caia sobre nós e nossos filhos’, que teria sido proferida por líderes judaicos na fatídica sexta-feira.

Talvez alguns dos grandes equívocos de Mel Gibson possam ser explicados por sua biografia. O suposto anti-semitismo não é o único. O exagero da violência conduz seu filme para outra direção.

O filme já chegou à mídia, bem antes de estrear, como sempre. E a imprensa tem nas mãos uma rara oportunidade de espelhar o filme com a seriedade e a responsabilidade que lhe são inerentes.

E se pautássemos quem raramente é pautado, como o escritor paulista Sílvio Fiorani, autor de um belo romance intitulado O Evangelho de Judas, lançado nos anos 1980 pela editora Bestseller? E por onde anda o general Danillo Nunes, autor de Judas: traidor ou traído, lançado em 1968, pela editora Record?

Que venha a controvérsia! Ela será saudável. Se é proibido proibir, não é proibido discutir. Ao contrário, é indispensável.