Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O racismo nosso de cada dia

Lá se vão pouco mais de três décadas, eu trabalhava na redação de um conhecido órgão da imprensa carioca, quando ouvi um dia de um colega habituado às facilidades da vulgata dita marxista que não havia racismo no Brasil, que isto seria ‘coisa de sociólogo americano’. Menos de uma semana depois, o editor da mesma publicação resolveu dar com destaque uma matéria sobre Lupiscínio Rodrigues, o grande compositor gaúcho da dor-de-cotovelo. Foi impedido sem delongas pelo dono da empresa, que proclamou: ‘Negro não vende’.

Nunca me esqueci do episódio, aliás dos dois episódios, nem da atitude do editor, profissional de imprensa até hoje bastante ativo, que respondeu indignado ao patrão: ‘Vende, sim, e o senhor fatura bastante com eles no Carnaval!’ Ato contínuo, tirou do cabide o paletó e foi para casa. Foi chamado de volta (a matéria não foi publicada), mas terminou demitido alguns meses depois.

Coisas desta ordem acorrem naturalmente à cabeça no momento em que, a propósito da questão das cotas para negros nas universidades, surgem textos e mais textos na grande imprensa para tentar provar que o problema no Brasil não é a cor da pele, mas a condição econômica. Por mais que um ou outro artigo de estudiosos ou de militantes apontem para variáveis de natureza psicossocial, para além da pura relação de classe social, levanta-se um bloco maciço de ouvidos moucos, infenso à admissão da hipótese de que possa existir um profundo mal-estar racial no país.

O curioso, porém, é que, a exemplo da sincronia dos dois episódios que presenciei décadas atrás, a pretensa certeza dos ‘racialdemocratas’ costuma ser abalada por fatos de ampla repercussão na mídia. Um deles foi o assassinato de um dentista em São Paulo, barbaramente executado por policiais, devido à cor da pele e nenhum outro motivo. O outro foi a expulsão de um jovem de um shopping center no Rio de Janeiro, também por motivo da cor da pele e nenhuma outra razão.

Este último fato repercutiu ainda mais que o primeiro, já que a vítima era filho de criação de um astro da música popular. A questão é a seguinte: aos que esgrimem o argumento de que não se sabe direito quem é negro no Brasil, é forçoso contra-argumentar que os porteiros dos edifícios de luxo sabem, a polícia sabe, os empregadores sabem, as elites discriminatórias sabem mais do que ninguém.

Vulgata canhestra

Talvez o debate sobre essa espinhosa questão possa ser incrementado por um conceito oriundo da filosofia política. Trata-se daquilo que o francês Jacques Rancière chama de ‘partilha do sensível’, isto é, um sistema de evidências sensíveis que torna visíveis ao mesmo tempo a existência de um ‘comum’ e dos recortes ideológicos que definem os lugares e os papéis destinados aos cidadãos numa sociedade qualquer.

Assim, antes mesmo do estabelecimento legal, constitucional dos direitos da cidadania, existe uma forma de partilha sensível ou ‘estética’ que determina quem efetivamente pode ocupar o lugar pleno de cidadão.

Na base do arcabouço político existe essa estética, que não se entende como ‘vontade de arte’, e sim como determinação do visível e do invisível constitutivos da experiência política. Na Grécia Antiga, o escravo não entrava no jogo político. No Brasil de hoje, o descendente de escravo dificilmente fura as barreiras.

Mas pode furar as barreiras, haverá quem argumente – e com alguma razão. É perfeitamente possível que algumas individualidades, por circunstâncias excepcionais, consigam chegar ao ápice de determinadas configurações sociais, no empresariado, nas artes, nas profissões liberais, na política. Isto não quer dizer que o mecanismo de exclusão presente na dita partilha estética deixe de estar funcionando. Ele continua, sim, barrando a maioria, aqueles que não se configurem como exceções. E mais, a natureza dessa exclusão é visceral e originariamente política, o que faz com que inclusão social dos que são fenotipicamente barrados seja um fato político, um conquista a ser inserida no plano dos direitos civis e não na vaga prateleira dos direitos humanos.

São certamente grandes as resistências ao reconhecimento dessa exclusão estética. A cor clara sempre foi uma vantagem patrimonial, é complicado para cada um abrir mão das suas defesas sócio-narcísicas. Por isto, é intelectualmente cômodo apegar-se ao economicismo de uma vulgata canhestra: o problema é a pobreza, jamais a diferença fenotípica.

E tome editorial hipócrita ou equivocado.

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Jornalista, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro