Monday, 14 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

O fetiche e o impasse

A cobertura jornalística dos eventos de outubro termina antes de formular perguntas que talvez sejam as mais importantes. Por exemplo: se manifestantes violentos forem parar nas cadeias de São Paulo e Rio de Janeiro, serão obrigados a se submeter a qual dos dois códigos vigentes? O das organizações criminosas que aí reinam ou o de seus associados, os carcereiros corruptos e (tautologia) violentos? No caso de uma aproximação entre black bloc e PCC, digamos, quem se beneficiará mais com o know-how do interlocutor?

A edição da Folha de S. Paulo de quinta-feira (17/10) publica artigo de dois pesquisadores – Esther Solano, da Unifesp, e Rafael Alcadipani, da FGV-EAESP –, no qual procuram apresentar uma descrição menos jornalística (no sentido de superficial) do fenômeno que ocupou as manchetes: “Violência ‘black bloc’ visa chamar atenção de um Estado ausente”.

Todo esforço de conhecimento da realidade merece incentivo, mas o texto é gritantemente desprovido de um background cognitivo mais sólido. Não coloca os black blocs em contexto, nem mostra um mínimo indispensável de visão política do processo social. Acerta, entretanto, ao dizer que o black bloc “virou um fetiche, uma construção midiática”. Os autores, entretanto, não conseguiram ver no espelho a fetichização que eles mesmos fazem da tática black bloc.

Sem mídia não há fato social

A centralidade da mídia jornalística na constituição de uma representação social sobre o rumo que tomaram os protestos nascidos do vulcão de junho e julho exige a submissão de suas narrativas a uma crítica cerrada, sem o que a confusão reinante só se ampliará.

Na mesma edição da Folha de S. Paulo, a manchete da página C6 é “Nenhum dos 60 detidos em SP será indiciado”. É a pauta da repressão. Poder-se-ia dizer, parodiando Foucault, “não vigiar e punir”. Se os jornalistas que repercutem agora o discurso da punição parassem para pensar, veriam que a “saída” de responder com violência legal (e não com inteligência policial) à violência nas ruas só pode conduzir a prejuízos sociais bem mais vultosos dos que os hipoteticamente decorrentes dos finais de manifestações.

Um PCC reforçado com inteligências contestatárias. Uma agenda de crítica ao Estado – que, sim, como se lê no artigo acima mencionado, em fala colhida de manifestantes, pratica um vandalismo cotidiano contra as vítimas da opressão social – enriquecida com técnicas e táticas da bandidagem.

Novos Comandos Vermelhos?

Algo parecido teria acontecido na gênese do Comando Vermelho, quarenta anos atrás, no Rio de Janeiro, quando combatentes da luta armada pelo socialismo (e não pela democracia, como enganosamente se escreve dia sim, outro também) se tornaram companheiros de cadeia de bandidos mais capazes de articular um discurso contra o poder.

Sintomaticamente, como menciona Leonencio Nossa em Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia (ver aqui uma resenha), oficiais do Exército que haviam combatido os guerrilheiros do PC do B foram mais tarde ocupar cargos de direção em secretarias de Segurança Pública dos estados. Depois do fim da ditadura, é bom que se assinale.

Todos conhecem o resultado.

Um parêntese: em matéria de “luta armada” contra o sistema, os black blocs são muito superiores aos guerrilheiros de antanho, que, como relatou o honesto Jacob Gorender (1923-2013) em Combate nas Trevas, gastaram mais dinheiro para montar os assaltos a bancos do que arrecadaram nos mesmos. E os assaltos eram apenas um meio de financiar o verdadeiro combate, que se daria no campo, à la cubana.

O enfrentamento violento, embora ainda não mortífero, com as forças da ordem agora praticado tem uma eficácia política maior, graças, é claro, à colaboração de outros atores do Estado e da sociedade civil: polícia, mídia e manifestantes que não se incomodam com a presença, em suas mobilizações, de forças parasitárias incapazes de convocar elas mesmas uma manifestação, por falta de bandeira que unifique mais do que algumas dezenas de ativistas dispostos ao enfrentamento. Registre-se que o Estado, nos idos de 1970, soube operar com grande eficiência a repercussão negativa da luta armada, com a colaboração de uma mídia mais ajoelhada do que amordaçada. Fecha parêntese.

No Rio de Janeiro, é cada vez mais perceptível nas ações violentas a presença de forças políticas vinculadas ao Estado ou a ele pretendentes. Os jornalistas ainda não foram capazes de apurar isso. Um professor da UFRJ que descreveu o fenômeno, Paulo Baía, foi sequestrado por indivíduos que falaram em nome da Polícia Militar. O recado: pare de falar, ou não falará mais (ver “Atentado à liberdade de imprensa”).

A raiva e o impasse

Entendamo-nos: existe uma profunda indignação, existe uma raiva socialmente ancorada. Minha hipótese é que o processo de desfascistização do país não foi tão longe quanto deveria. Isso pode ser dito de maneira inversa: o Brasil ainda não se democratizou radicalmente, no sentido atribuído por Ulysses Guimarães à democracia quando promulgada a Constituição de 1988: tratar-se-ia de um documento “da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social”.

Essa raiva foi contida e frustrada pela despolitização, foi ao mesmo tempo sufocada e alimentada pela opressão, e está presente nas manifestações de violência, é um dos ingredientes delas, mas está longe de ser o único.

Como em todo contexto social, convive com muitos outros ingredientes. A questão é saber, e saber logo, como essa raiva será canalizada se persistir a situação atual. Está sendo imposto às manifestações uma espécie de pedágio a ser pago a uma das duas partes em confronto físico. A obrigação de fazer aliança ou com a polícia, ou com os outros destruidores, seus contendores nas refregas.

Na verdade, essas duas forças complementares, só aparentemente antagônicas, estão formando uma tenaz que esmaga os movimentos sociais reivindicatórios e os expulsa do território aparentemente em disputa, cada vez mais compartilhado pelos dois fogos.

Até aqui, é preciso ter clareza disso, as forças de segurança não usaram senão uma pequena fração de seu poderio. Pensem no ano da Copa. Quanto de cálculo houve nisso ainda não é possível dizer, porque se há cálculo (e não “despreparo” policial) seus autores não o revelarão.

A mídia jornalística faz o jogo dessas forças, que tendem, na dialética de suas provocações e omissões, a conduzir o ímpeto de junho e julho ao esgotamento pelo impasse.

Repita-se: a mídia continua a não fazer perguntas elementares, a começar da mais óbvia: por que a inteligência policial não é empregada pelas autoridades para prevenir – função constitucional da PM, por exemplo – atos violentos?