Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Por quem dança a deputada

A dança é ‘uma das supremas expressões religiosas’, escreveu num perfil o poeta Murilo Mendes. Também o rei Davi achava isso, pois cantava, bebia e dançava para louvar ao Senhor.

Nos anos 1970 o escritor Júlio César Monteiro Martins, que mora há muitos anos na Itália, escreveu um romance que teve muitos leitores, lançado pela Codecri, a editora do Pasquim. O título – Sabe quem dançou? – fazia, em outro sentido, a pergunta que hoje freqüenta as conversas de rua.

Quem dançou, em outro sentido, foi a deputada Ângela Guadagnin (PT-SP), defensora perpétua do MSV, o movimento dos sem-vergonha, mensaleiros que pensam que os leitores, telespectadores e, principalmente, eleitores, são bobos da corte, sempre prontos a serem enganados mais uma vez.

Além da foto e dos textos, pequeno videoclipe roda hoje na internet de e-mail em e-mail. Não há como negar o ar de satisfação da deputada e dos alegres senhores de Windsor, digo, do Congresso, celebrando a impunidade!

A capa da Veja (edição nº 1949, de 29/3/ 2006) é antológica. Pegou uma das melhores seqüências das fotos de Beto Barata, da Agência Estado, registrando a parlamentar se sacudindo no plenário da Câmara dos Deputados. Na chamada de capa ‘Moral torta’, a arte pôs uma bússola no lugar do ‘o’ de ‘moral’. Quase tudo foi dito na capa: ‘A deputada petista Angela Guadagnin comemora a vitória da impunidade’. E abaixo das letras garrafais que têm a bússola vêm chamadas terríveis: ‘O governo do PT perde a bússola ética e o senso do ridículo’, ‘Paloccigate: os crimes da operação de acobertamento’.

Risco de implosão

Que também o PT adotaria outros pesos e outras medidas, somente saberíamos quando ele fosse governo. E o partido não demorou a mostrar sua face horrível. Não que todos os outros não a tivessem, mas durante décadas a maioria dos brasileiros imaginou que com o PT no poder as coisas seriam diferentes. Logo, porém, a nação viu estarrecida que o automóvel Fiat Elba, veículo importante no processo de impeachment do presidente Fernando Collor, aparecia substituído por um Land Rover, recebido de presente pelo então secretário-geral do partido, Sílvio Pereira.

O PT não tem, porém, apenas uma face horrível. Avanços importantes foram feitos em administrações petistas: em estados, em municípios e na presidência da República. Os principais inimigos do PT estavam e estão dentro dele, como mostra Frei Betto em A Mosca Azul.. Semelham traidores que ajudam aqueles que de fora querem desmoralizá-lo. Nós, intelectuais, temos o dever do olhar mais largo e este não pode atrelar-se a visões simplistas, com o fim de condenar ou absolver, esquecendo que a nossa função é antes de tudo entender.

O Brasil vai demorar a entender este estado de coisas. É a primeira vez na História que um governo de cunho popular, de esquerda, corre sério risco de implodir-se na corrupção. Para quem temia a tragédia e chegou a acenar para ela, lembrando nas primeiras denúncias – como fez o deputado federal e então ministro Aldo Rebelo (PCdoB-SP) – possíveis semelhanças entre o governo do presidente Lula e o de Getúlio Vargas, que se suicidou na tragédia de 1954, todo cuidado parece pouco.

Todo cuidado

Mas o carma do governo parece perpétuo. Não existe nada ruim que o governo não consiga piorar, como deu exemplo no caso do caseiro. Não bastasse a bomba que foi a revelação de Francenildo Costa, membros da alta cúpula lançaram mais gasolina na fogueira ao violarem o sigilo bancário do denunciante. Os desdobramentos eram inimagináveis e fora de controle, pois ninguém sabia o que estava acontecendo. O pobre trabalhador, que votara num trabalhador, teve que proclamar o que vinha ocultando e não estava obrigado a revelar a ninguém: seu pai, dono de uma empresa de ônibus do Piauí, recusara-lhe a paternidade e negociara com o filho uma compensação financeira, afinal depositada na Caixa Econômica Federal.

Dançou a deputada Ângela Guadagnin ao dançar sua celebração, dançou o ministro, dançaram altas figuras da República e provavelmente muita gente fina e nobre dançará um pouco mais até que este momento passe.

‘Que procuramos com nossos esforços – sossego, paz, felicidade? Não, apenas a verdade, mesmo que esta seja terrível e detestável.’ Assim escrevia o filósofo Friedrich Nietzsche em carta à irmã, acrescentando: ‘Se persegues a felicidade e a quietude da alma, crê, mas se queres ser discípula da verdade, então procura’.

Personagens como o caseiro foram assim definidos no Grande Sertão: Veredas, o extraordinário romance de João Guimarães Rosa cujo cinqüentenário estamos comemorando em 2006: ‘Pobre tem de ter um triste amor à honestidade’.

Ao chegarem ao poder, setores do governo esqueceram a que partido pertenciam, a que projeto de governo deveriam servir, a quem representavam nas suas ações e partiram para a construção de uma estranha e nova classe média, que se nutre do Estado, por meios lícitos ou ilícitos, sem distinguir as modalidades.

De todo modo, é preciso muito cuidado nas denúncias. O ex-ministro Alceni Guerra que o diga! Ele pagou caro por falsas acusações. Não é impossível que outros Alcenis Guerras estejam no meio de nós, tomados no turbilhão de tantas denúncias.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), onde dirige o Curso de Comunicação Social